A autora Patrícia Sá conta-nos sobre a sua descoberta do terror português e a necessidade de legitimar o género

«Ainda se acha que o terror é um género de homens, e na nossa antologia somos maioritariamente mulheres»

Patrícia Sá estreou-se com o conto «Amor» na antologia Sangue Novo, em 2021, e, em 2022, publicará «Sangue e Cinzas» na antologia Sangue, editada pela Trebaruna. Mas não é só como escritora que a Patrícia poderá dar cartas no panorama do terror nacional, ainda em construção, mas em franco crescimento. Reconhece que há ainda trabalho a fazer na área académica, mas acredita que legitimar o terror como género literário «sério» é possível.

De Sandra Henriques

 

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Como é que descobres o terror e quando é que começas a gostar do género?

Sei que, desde pequena, sempre adorei fantástico, ficção científica… O meu pai apresentou-me a esse género de filmes e eu sempre amei. E sempre tive um fascínio brutal em relação a tudo o que fosse paranormal, ocultismo e alquimia. Filmes de terror confesso que nunca via, mas tinha muito interesse por contos ou histórias de terror. Tinha interesse de qualquer forma, mas não gosto muito de gore, por exemplo. De facto, via mais coisas relacionadas com fantasia ou com ficção científica do que terror. Mas gostava de assombrações, casas assombradas, sempre tive fascínio por isso. Portanto, até me via a escrever sobre assombrações. Quando vi o curso [Escrever Terror], pensei: «eu não sei escrever para assustar, mas isto pode ensinar-me; se calhar, é um desafio, uma coisa diferente». Eu queria [cursos de] escrita de fantástico. Tinha feito outros cursos de escrita criativa e parecia que havia preconceito em relação a um certo tipo de escrita. E adorei o curso de Escrever Terror. Já tinha lido os clássicos, como o Edgar Allan Poe e a Mary Shelley, sou grande fã do gótico. A minha dissertação de mestrado é sobre os ecos de Frankenstein noutros livros, e vou abordar temas que se relacionam com o monstro. Mas acho que [o curso] despertou muito mais o meu interesse em relação ao género do terror em específico e também me fez perceber que posso ter vários tipos de terror. As interligações que pode ter, que não é só aquele susto, sangue, gore, que toda a gente acha que é. É muito mais do que isso, tem muitas mais implicações psicológicas, tem que ver com podermos exteriorizar os nossos medos de outra forma, encará-los, lidar com eles. E eu, se calhar, tinha este preconceito, de que o terror tinha de ser uma coisa que só causasse medo, mas eu sempre gostei de coisas com vampiros, lobisomens e criaturas, e isso enquadra-se, de alguma forma, no terror. Por isso, se calhar, o terror estava sempre cá, e eu não o via como terror.

Mas já tinhas escrito terror antes?

Lembro-me de uma disciplina [na escola] que era Atividades de Enriquecimento e Apoio ao Estudo. A professora obrigou-nos a escrever uma história baseada em imagens e depois obrigou-nos a partilhar. Eu fiz uma história de terror e toda a gente ficou chocada. A professora chamou os meus pais à escola! Eu fiz ali uma cena macabra e sei que traumatizei aquela gente toda. Portanto, isto já vem de trás, claramente.

Sentes que há essa necessidade de distinguir entre terror e literatura?

Há essa questão da literatura erudita e depois aquela que não se enquadra. Para mim, é uma distinção muito parva. Se alguma coisa é boa, é boa. Até porque alguns textos que as pessoas consideram clássicos ou canónicos têm elementos [de terror]. Por exemplo, n’ Os Irmãos Karamazov, há uma cena em que se fala com o Diabo. Vão-me dizer que isso não é terror ou fantástico? Eu fiz uma cadeira na Faculdade de Letras que se chama Ficção Científica e Fantasia de Expressão Inglesa. A minha professora, a Doutora Angélica Varandas, lutou imenso para que se conseguisse criar essa cadeira e acho que é uma vitória!

E tinhas noção de que a tua turma foi a primeira do curso Escrever Terror? Vocês tiveram uma tremenda responsabilidade. O facto de quatro pessoas terem aparecido para fazer o curso foi o sinal de que era preciso haver continuidade, mais sessões. 

Não tinha essa noção, mas que honra.

No lançamento do Sangue Novo, falaste sobre mitologia tradicional portuguesa, que está cheia de histórias, e isso lembrou-me aquele artigo do David Soares sobre a relação entre a Inquisição e o facto de não existir uma tradição de terror em Portugal.

Mas faz todo o sentido. Na aldeia [de João Pires] onde está a casa [do conto «Amor»], há histórias sobre bruxas e lobisomens, todo um folclore que eu não sabia que existia. Nós, se calhar, temos muitas histórias destas que vêm da tradição pagã e que foram ocultadas pelo cristianismo.

Já conhecias terror português antes do curso?

Não. Lembro-me de pesquisar na Internet e só me aparecia o Álvaro do Carvalhal, que agora voltou a editar-se. E o Manoel de Oliveira, que é considerado um cineasta de renome, e que adaptou o conto Os Canibais ao cinema.

É como o Kubrick ter feito o Shining. Para a maioria das pessoas, é um filme de autor, mas ele não é um realizador de terror puro e duro.

Isso é hilariante, tendo em conta aquilo que eu vi do Kubrick, como o Clockwork Orange.

Voltando ao teu conto na antologia Sangue Novo, «Amor», como é que achavas que os leitores o iam receber?

Há aquela ideia da morte do autor, de que o texto vale só por si e não interessam as intenções do autor. Não sou 100% adepta disso. Eu percebo até certo ponto essa ideia, porque, a partir do momento que o texto sai para o público, deixa de ser só nosso, e as pessoas vão ver outras coisas. E até pode haver lá coisas em que nós não pensámos, mas que estão lá porque não vivemos isolados e há coisas subconscientes. Eu sou de literatura e faço análise a tudo isso, mas ao escrever, às vezes, só no fim é que percebo certas coisas. [Neste conto], só ao reler várias vezes é que me apercebi de que era sobre memórias. Havia certas coisas que eu queria recuperar, aquela ideia de que as coisas existem e depois deixam de existir, a efemeridade da vida e onde está aquilo que eu antes conhecia. Estava a pensar muito nisso e, de facto, acabou por ser um conto sobre memórias, mas quando estava a escrever não era isso que tinha pensado desde o início. Foi uma coisa que descobri no fim.

É curioso dizeres isso, porque eu o li como um conto de memórias desde o início. 

Ao reler, também vejo isso, mas não pensei nisso ao escrever. Queria escrever sobre uma casa assombrada e gostava de usar aquelas criaturas do imaginário português. Acho que também devemos usar o que temos.

E temos de parar com essa ideia de que isso não existe em Portugal, que temos de ir buscar inspiração ao estrangeiro. E eu adorava que se estudasse mais literatura de terror em Portugal.

Uma coisa que reparo, estando na Academia, é que as pessoas tentam muito legitimar a sua escolha e tentam ancorar-se, por exemplo, em narratologia ou termos que já sejam cientificamente aceites. Assisti a uma conferência sobre Literaturas Apocalípticas de uma professora italiana, e ela justificava por que tinha escolhido a ficção científica. Não era preciso! Para mim, não era preciso, mas é triste sentir essa necessidade. Eu, pelo menos, tenho essa ideia de que, se é bom, é bom. Quanto mais imaginativo, melhor. É ficção, podemos dar largas à imaginação. Há filmes de terror que são muito maus, temos de admitir, mas isso é como tudo.

Como autora, já sentes que tens uma assinatura, que tens uma voz? Imagina que, daqui a uns anos, estão a estudar a tua obra na faculdade, e os alunos dizem «isto é claramente um texto de Patrícia Sá». Já sentes isso ou a tua ambição nem sequer é essa, nem te interessa ser reconhecida por um estilo em particular?

Por acaso, ia gostar que as pessoas que gostam do que eu escrevo lessem e dessem a sua opinião. Tal como gosto de partilhar os meus textos no Teias [de Aranha] e ouço o que vocês dizem. Às vezes, dizem coisas que nem sequer pensei, e aprendo imenso convosco. Mas acho que tenho vindo a desenvolver uma voz. Tenho-me apercebido de que, ao início, parecia que era mais irónica, e eu acho que continuo a ser, porque tenho um sentido de humor irónico e negro, mas agora também estou a explorar outros lados, [como] análises psicológicas. Acho que o conto [«Sangue e Cinzas»] que fiz para a antologia Sangue até foi um conto mais de terror. É o texto que fiz [até agora] de que tenho mais orgulho.

Sentes que o terror em Portugal está a crescer?

Acho que há mesmo uma revolução que está a começar. Temos imensas coisas a acontecer ao mesmo tempo. Temos o Escrever Terror, a publicação dos contos do Álvaro do Carvalhal, a edição de uma compilação de contos góticos luso-brasileiros. De repente, começam a acontecer montes de coisas. Temos a nossa antologia, o livro da Nádia [Batista], muita coisa que eu nem esperava. Temos também aquele o livro do Luís Corte-Real, O Deus das Moscas Tem Fome, um livro que achei muito original e que tem elementos de terror.

O que só prova que o terror não existe só quando há um blockbuster ou um best seller, porque a produção continua a existir e tem sido regular. E há também cada vez mais mulheres a escrever terror.

Também ainda se acha que o terror é um género de homens, e na nossa antologia somos maioritariamente mulheres, por acaso. Há autores canónicos mulheres, como a Edith Wharton ou a Elizabeth Gaskell, que também têm antologias de terror, histórias de fantasmas. Eu acho isso fantástico!

E ainda temos de combater o preconceito…

Sim, o preconceito que as pessoas têm: «vocês conseguem conciliar a escrita de terror com a vida normal?» E porque não? É ficção! [Parece que, para o resto do mundo,] temos de justificar por que é que escrevemos assim. Porque gosto! Eu gosto de fantasmas, eu gosto de vampiros, eu gosto de demónios! Temos de nos justificar constantemente, é muito irritante, porque eles não fazem isso a [escritores] de outros géneros. E fazem esse tipo de perguntas descabidas. Deixem-me escrever o que me apetece!

Que expectativas é que tens para o Sangue Novo?

Gostava que isto nos fosse lançar de alguma forma, gostava que fizéssemos a tradução para inglês e alcançássemos um público internacional. Acho que há muitas coisas que se podem tirar do Sangue Novo. Foi o nosso primeiro projeto e tem ali muita diversidade, vozes totalmente diferentes, temáticas totalmente diferentes, formas de encarar o terror totalmente diferentes. Acho que seria uma mais-valia se mais pessoas lessem [o livro]. É uma pena se as pessoas não ficarem, de facto, a saber que há terror em Portugal. As editoras tradicionais não publicam este tipo de coisas porque há aquele preconceito de que o terror não é um género sério. Por isso é que é importante haver a Divergência, a Imaginauta, [editoras] que tentam contrariar isso e publicam autores nacionais, e fico muito feliz que o façam. Eu gostava que nós mudássemos este paradigma.