Cemitério dos Prazeres: «uma cidade dos mortos para os vivos»

O turismo cemiterial, um ramo do turismo macabro, tem vindo a crescer e a atrair cada vez mais visitantes. Nos cemitérios lisboetas, temos uma riqueza patrimonial, cultural e artística tão abrangente que visitá-los é como ir a um museu. 

E para que este património singular não caia no esquecimento e não seja somente associado ao luto, a Divisão de Gestão Cemiterial oferece, aos fins de semana, visitas guiadas sob a orientação dos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa.

Numa manhã de sábado, a Fábrica do Terror propôs-se investigar a Arquitetura Funerária do Cemitério dos Prazeres.

Conduzidos pelo historiador Licínio Fidalgo, que intercalava vivências pessoais com curiosidades do cemitério, explorámos vários pontos de interesse e descobrimos alguns dos segredos deste lugar.

Localizado às portas de Campo de Ourique, o Cemitério dos Prazeres, construído em 1833, ocupa 12 hectares. Alberga cerca de um milhão de «habitantes» e 7000 jazigos, numa configuração inspirada no parisiense Père-Lachaise.

Nasceu, na parte ocidental da capital, para colmatar a necessidade de enterrar mortos após um surto de cólera-morbo, no início do século xix, porque até então os mortos eram apenas enterrados em igrejas e conventos.

Com o passar do tempo, o cemitério foi crescendo e os jazigos acompanharam a arquitetura urbana, desde a arte nova ao modernismo, passando pela portugalidade («jazigos-casa» que replicam a arquitetura típica portuguesa, assemelhando-se a uma casa de família) e pelo naturalismo (jazigos em forma de árvore ou rocha).

Logo à entrada, o portão de ferro que «separa a cidade dos vivos da cidade dos mortos» desperta-nos a atenção. É da autoria do arquiteto Domingos Parente da Silva e inclui simbologia representativa da morte. Se visitar este local, vale a pena demorar-se a observar este ponto de passagem. As ampulhetas são uma referência ao tempo que passa. Como têm asas de morcego, são uma alusão à morte. Chamas e archotes invertidos simbolizam a chama da vida a apagar, e coroas de flores e papoilas representam o sono.

Neste cemitério, é frequente verem-se construções de autores anónimos coexistirem com monumentos de arquitetos de renome e obras de grandes escultores, desde o século xix até à atualidade. A imponência dos jazigos denuncia o domínio das famílias aristocráticas e da elite da cidade em quase todo o espaço funerário, com crenças e gostos arquitetónicos de época.

Os jazigos eram pensados de modo a honrar o nome do falecido e a exibir o poder e a condição monetária da família, sendo que os das figuras importantes ficavam em «sítios por onde todos passavam». Em muitos deles, destacam-se as profissões dos proprietários, como o músico que mandou colocar uma pauta na parede lateral do jazigo ou o carpinteiro que recriou, esculpida na pedra da sua morada final, a bancada e instrumentos do seu ofício. Os símbolos tinham o papel fundamental de ajudar uma população analfabeta a identificar a quem pertencia o jazigo, a profissão do «ocupante» e, em certos casos, como morreu.

Também aqui há quem tentasse «enganar a morte». O túmulo do engenheiro militar Aniceto da Rocha, por exemplo, tem um dado com uma particularidade: a soma do número das faces opostas não dá sete, como nos dados comuns. Quase parece que tentou a sua sorte com um «dado falso», mas, com batota ou não, a morte ganha sempre. Insólito, também, é o facto de este túmulo ter sido desenhado para o caixão ficar na vertical, obrigando o seu «ocupante» a permanecer a eternidade de pé.

Na alameda principal, um dos jazigos monumentais não passa despercebido: o do «Monteiro dos Milhões». Foi encomendado, em 1908, por António Augusto Carvalho Monteiro ao arquiteto italiano Luigi Manini, encarregado da restauração da Quinta da Regaleira, em Sintra. A porta deste jazigo é ladeada por esculturas de duas virtudes teologais: a «Fé», a carregar a cruz, e a «Esperança», com o cálice. As duas tochas tombadas sobre papoilas-dormideiras representam o sono profundo do justo que dorme na paz eterna.

A título de curiosidade, Licínio Fidalgo revelou-nos que Carvalho Monteiro ordenou que a porta deste jazigo pudesse ser aberta com a mesma chave que abria o seu palácio da Quinta da Regaleira e da Quintela Farrobo, em Lisboa. Se é verdade ou não, permanece uma incógnita.

O ex-líbris desta visita guiada foi, sem dúvida, o maior mausoléu privado da Europa. Apelidado de jazigo Palmela, foi construído em 1849 e projetado pelo arquiteto Giuseppe Cinatti. Encontra-se num terreno mais elevado do que o cemitério, para se distinguir e afirmar a sua importância. Está também ladeado por 12 ciprestes, sob os quais repousam os criados mais fiéis do Duque de Palmela: homens do lado direito e mulheres do lado esquerdo.

Além de traços de arte nova, a influência maçónica no jazigo de Pedro de Sousa Holstein, o primeiro Duque de Palmela, é a que mais se destaca. A título de exemplo, referimos o empedrado de losangos pretos e brancos de acesso ao pórtico dórico, as colunas evocativas do Templo de Salomão, os sete degraus da entrada, além do número três no livro do Anjo da Morte, por cima da pirâmide do jazigo (obra do escultor Araújo Cerqueira).

No interior, com espaço para 200 corpos, encontram-se as obras de arte do cenotáfio de Antonio Canova, a escultura feminina de Célestin Anatole Calmels e as arcas tumulares feitas pelos irmãos Teixeira Lopes e Germano José de Salles. Se se aventurar a visitar a cripta, tenha cuidado para não perturbar os milhares de aranhas que lá residem.

Com tanto para explorar no Cemitério dos Prazeres, uma visita sabe a pouco e fica a vontade de regressar. Este cemitério, assim como o do Alto de São João, tem à disposição visitas guiadas gratuitas todos os meses, cada uma com temáticas diferentes. Só é necessário uma inscrição prévia.

Factos interessantes sobre o Cemitério dos Prazeres:

 

  • Tem a maior coleção de ciprestes da Península Ibérica, entre outras espécies raras de flora. Os ciprestes são muito usados em cemitérios porque as raízes crescem na vertical e não prejudicam as campas. Permanecem verdes o ano inteiro (simbolizando a eternidade) e o seu aroma permite disfarçar os odores da morte.

 

  • Na alameda central, está uma capela dedicada ao culto de Nossa Senhora dos Prazeres, construída entre 1856 e 1858. Segundo a lenda, no local deste cemitério, existia uma fonte, e por cima dela terá aparecido Nossa Senhora dos Prazeres. A água passou, então, a ser considerada milagrosa, o que levou a que posteriormente se colocasse uma imagem desta aparição numa ermida construída para o efeito. A ermida não resistiu ao avançar do tempo, mas a imagem ainda hoje se encontra na capela.

 

  • Nesta mesma capela, fizeram-se as primeiras autópsias fora do Instituto de Medicina Legal, mas desde 2001 alberga o Núcleo Museológico, com peças de jazigos abandonados marcados com um C de «caducos».

 

  • Na tranquilidade deste cemitério, repousam ainda personalidades como Vasco Santana, Cesário Verde, Ofélia Queiroz (a única namorada oficial de Fernando Pessoa), Mário Cesariny, Natália Correia, Raul Solnado, Carlos Paredes e, mais recentemente, Mário Soares. É no Talhão dos Artistas que encontramos alguns dos maiores nomes da cultura portuguesa.