Entrevista à caracterizadora Susana Cruz

«Se não fosse pelo amor à camisola, pela minha resiliência, não estava onde estou hoje»

A conta de Instagram da caracterizadora Susana Cruz (@mythicmakeupartistry) é criativa o suficiente para aliciar os fãs de terror (e deixar o nosso entrevistador algo incomodado com o realismo de cada foto).

Nesta conversa, falámos sobre os seus três amores — à camisola, ao terror e à caracterização —, sobre o seu percurso profissional e criativo, os cursos que está a preparar e o grande objetivo de criar a melhor escola de caracterização da Europa.

 

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Ricardo Alfaia

O nosso livro está à venda!

O Venom da Susana, exposto na FNAC do Porto

Como apareceu este teu amor pelo terror?

Isto começou muito cedo, na minha infância, na altura do Cartoon Network, com o Courage, the Cowardly Dog, um cão que passava por uma série de problemas assustadores para defender os donos, e o The Grim Adventures of Billy and Mandy, que eram dois miudinhos que andavam com a Morte, o Grim Reaper. Já nessa altura, adorava coisas de terror. Também foi a partir daí que percebi que afinal não era o lado beauty da maquilhagem que me atraía tanto, mas sim a caracterização e os efeitos especiais.

 

Depois, passou também para os filmes, para a literatura?

Literatura nem tanto. Confesso que, na leitura, prefiro astrofísica e coisas a ver com astronomia, não leio tanto terror. Mas gostava de começar.

 

Então, podes começar agora com a Fábrica, temos muitos contos.

Sem dúvida! Já estive a espreitar! [risos]

 

Qual é o teu filme preferido?

Eu gosto muito dos filmes do Saw, acho que foi uma saga muito interessante, até em termos de caracterização: sangue por todo o lado, braços cortados. Acho que, para mim, foi dos melhores a nível de caracterização, mas também gosto muito dos filmes do Tim Burton, também tem excelentes trabalhos. Tudo o que seja relacionado com o Tim Burton ou com o Saw eu gosto. Tudo o que seja mais sangrento, mas que não se vejam defeitos. É mais por aí.

 

E também por causa da fantasia do Tim Burton?

Sim, [os filmes] têm histórias bonitas e gosto muito. É um dos meus realizadores favoritos.

 

Profissionalmente, começaste logo a pensar que gostavas de fazer alguma coisa ligada a isso ou a maquilhagem foi um passo para chegares ao terror?

A maquilhagem foi um passo, mas não começou de todo sequer na maquilhagem. Desde criança que me ofereciam Barbies, e eu tirava aqueles vestidos de princesas todos bonitos e, com folhas A4, fazia os meus designs e vestia-as com folhas de papel. Desde muito cedo que as pessoas achavam que eu ia para design de moda, e cheguei a ir [risos], mas, no primeiro dia de aulas, só pensava: «isto não tem piada nenhuma, o que é que eu estou aqui a fazer?». Nesse dia, cheguei a casa e disse aos meus pais que não ia para design, que ia ser maquilhadora, e eles ficaram em pânico [risos]. Não se conhecia muito, há uns anos, mas lá consegui convencê-los e tirei o curso com a Inês Mocho. Mais tarde, estava insatisfeita — porque sou insatisfeita por natureza, estou sempre à procura de mais — e disse-lhes: «não estou nada contente com isto, apesar de ser isto que eu quero». Gostava, mas já não era aquele entusiasmo. Já consumia muito YouTube internacional e, a partir daí, fui apresentada aos filmes, aos behind the scenes dos filmes de terror e essa produção toda, e foi a partir daí que comecei a explorar os efeitos especiais e comecei a colocar trabalhos no Instagram. Foi a melhor coisa que podia ter feito.

 

Como tem corrido a tua experiência com as curtas metragens em Portugal?

Tem corrido bem. Não é tão frequente como a parte de beauty, porque essa é mais procurada para noivas, maquilhagem social, batizados, enquanto o lado de efeitos especiais e caracterização não é tão frequente, porque é feito de uma forma mais amadora, não há tantos patrocínios, tem de sair do próprio bolso e nem sempre há cachê disponível para irmos muito longe. Mas vai acontecendo. Nas grandes produções, já é diferente, porque normalmente quem trabalha nesse meio já está mais familiarizado com o trabalho dessas pessoas, e é mais fácil chegar até elas do que estar a procurar alguém que seja de fora. É o que acontece, por exemplo, comigo. Nas curtas metragens em que trabalhei, como já conhecem o meu trabalho e já estamos num entendimento diferente, procuram-me sempre, em vez de procurarem fora. É um meio um bocadinho diferente, cá em Portugal, ainda.

 

E ir para o estrangeiro, procurar projetos no estrangeiro, também é um objetivo teu?

Sem dúvida. Está nos meus planos, mas eu sempre disse que primeiro ia conquistar Portugal e que depois, então, fazia o restante. Um degrau de cada vez, como se costuma dizer.

 

Há muita variedade naquilo que fazes. Quais são as inspirações? Como é o teu processo criativo?

Depende muito. Pode ser um filme que acabei de ver, ou alguma cor que vejo e penso: «esta cor é bonita, podia fazer alguma coisa relacionada com isto». Muitas vezes, também me inspiro em trabalhos de pessoas internacionais. Vejo isso como um desafio a mim mesma, «vou tentar fazer isto, mas da minha forma», nunca fazendo plágio do trabalho original, acho isso muito errado. Todas as minhas criações, apesar de serem fiéis ao personagem original, têm sempre o meu toque.

 

Como o alien que estás a fazer no momento?

Exatamente, sim. [risos]

 

Que está a ficar espetacular! Estou desejoso de ver o resultado final.

Está quase, mas isto tem muitos detalhes que estão ainda a ser feitos.

O Alien da Susana finalizado

É um trabalho muito árduo e que precisa também de muita paciência, não é?

Sim, eu acho que é mais amor à camisola do que paciência. Por exemplo, certas obras que faço são porque quero, não é por encomenda. Apesar de também as fazer por encomenda se me pedirem. Mas, no caso de serem obras só porque sim, só porque estou inspirada para fazê-las, tem de ser amor à camisola, porque estou a investir dinheiro meu e não estou a ter retorno imediato. Então, acho que é mais amor à camisola do que paciência, porque, sem a paixão, perdemos a paciência muito rapidamente.

 

E esses objetos que crias? Há possibilidade de os ver expostos um dia?

Sim, é esse o meu objetivo. Aliás, um deles já esteve em exposição, foi o que fiz do [filme] Venom: Let There Be Carnage e que esteve em exposição na FNAC do NorteShopping no ano passado [2021], em outubro, durante a estreia do filme.

 

Além de estares no Instagram, tens dois vídeos no YouTube que têm milhões de visualizações.

[risos] Toda esta jornada começou a partir daí, muito antes de o Instagram existir. Na altura, usava já a minha paixão pelos efeitos especiais e pela caracterização. Aquilo serviu como um escape da realidade. Comecei a fazer vídeos em que gravava a tela do computador e ia a um chat online conversar com pessoas de todo o mundo, mas ia caracterizada e filmava as reações delas. A partir daí, de boca em boca, o vídeo começou a espalhar-se e teve imensas visualizações, ficou viral, mas não deu em nada porque ainda não existia Instagram.

 

E sei que também tens um canal de TikTok de muito sucesso e que achei muito engraçado. O humor é uma grande parte da tua vida?

Sim, sem dúvida. Sempre tive aquilo a que chamo o funny bone, [que] nunca falhou em nada do que faço e que também faz parte do meu dia a dia. Nunca fui de levar as coisas muito a sério, nem consigo, a não ser que seja trabalho e tenha mesmo de ser, mas tenho sempre um bocadinho de humor a funcionar em tudo.

 

Ajuda-te no teu trabalho também?

Sem dúvida.

 

O cosplay é uma pequena parte, mas de que também gostas. São personalidades que vives ou são personalidades que estão dentro de ti e querem sair?

Eu diria que, no TikTok, são alter egos meus. E já admiti isso, porque se consegue ver refletido em certas coisas que os personagens dizem ou fazem. Há ali um toquezinho meu do dia a dia. Mas no cosplay, por exemplo, não. É simplesmente por divertimento. O Carnaval e o Halloween sempre foram as minhas celebrações favoritas, porque conseguimos andar transformados da cabeça aos pés noutra pessoa. Para mim, é mais divertido.

 

Como é que vês o terror ou a caracterização de terror em Portugal no momento? Estão a aparecer mais pessoas, está a aumentar?

Eu não sinto isso, de todo. Sinto que, cada vez mais, aparecem pessoas para o lado beauty, está a ficar muito saturado, mas, nos efeitos especiais e caracterização, não sinto isso. Tanto que, quando eu própria abro formações ou cursos, não há tanta procura para a parte da caracterização. Há uns anos, quando cheguei a tentar tirar o curso de caracterização numa escola em Portugal, disseram-me que não tinham pessoas suficientes para preencher uma turma, que eu teria de esperar até terem e que me chamavam. Isto deixa-me triste, mas, ao mesmo tempo, não me invalida de continuar a lutar. Até porque o meu objetivo é ter um dia a minha escola de caracterização e de produção de cinema, a melhor da Europa. Não digo a do mundo, porque aquela de Los Angeles é o topo do topo, e já seria noutro nível. Não digo que seja impossível, mas o meu objetivo final é esse. Ter a melhor escola europeia.

 

No Porto?

Não necessariamente, mas aqui em Portugal pelo menos.

Também dás workshops de aerografia. Também é parte dessa escola que queres montar?

Sim, é um início para isso. Já comecei a abrir estas formações há algum tempo. As de aerografia foram mais recentes, porque sou muito perfecionista e, antes de apresentar seja o que for ao meu público ou a pessoas que estejam interessadas em tirar formações comigo, estas têm de estar ao nível do que eu procuraria se fosse eu a tirar essa formação. Sempre fui da opinião de que, se as pessoas vão pagar, seja qual o valor, para ter algo em troca, tem de ser o melhor, ou o valor tem de ser justificável. Tento disponibilizar o melhor que está ao meu alcance cá em Portugal. Ainda assim, tento procurar coisas que estejam ao nível internacional, mas o nosso poder de compra é muito diferente do internacional, portanto tenho de me adaptar a tudo isso e ainda assim tentar oferecer o melhor. Caso contrário, não abro as formações. Essas de aerografia são muito recentes porque ainda estive a falar com possíveis patrocinadores, para ver se ofereciam qualquer coisa, e já consegui. Na formação, ofereço o kit completo de aerografia, que inclui o aerógrafo, o compressor e todas as ferramentas de limpeza e acessórios. Mas, lá está, foram dois anos a construir [esta formação], para chegar ao produto final. Ainda não está perfeito, mas já está quase no nível que eu procuro.

 

[Os alunos] são mais iniciantes ou são pessoas que já fazem e querem aprender mais?

Serve para iniciantes ou para pessoas que querem refrescar o conhecimento. Está adaptado aos dois. Normalmente, quando recebo as candidaturas, pergunto logo isso para perceber o público que vou receber e para adaptar a formação às pessoas que recebo.

 

E está a correr bem?

Sim. Tenho sempre muito mais procura de Lisboa.

 

Daí o próximo ser em Lisboa, em junho?

No final de junho, início de julho. Ainda estou a decidir as datas porque também depende dos sítios da formação. Também é outro requisito procurar um local que, além de disponibilidade, tenha as condições necessárias para se poder sujar. Tem de ser acessível nesse aspeto e tem de ter as condições mínimas para receber um certo número de pessoas.

 

O Porto e Portugal são um meio ainda pequeno.

Sim, e acho que o problema é mesmo esse. Há muita coisa que podia ser explorada de forma diferente, como o terror que vocês estão a fazer e muito bem, e há oportunidades que nem sequer se exploram.

 

Eu acho que as pessoas não sabem. Nós, na Fábrica, temos estado a reparar a diversidade imensa que existe em Portugal em termos de criadores de terror. O que falta é a possibilidade de mostrar às pessoas. É isso que queremos mudar. E, para terminar a entrevista, vou pedir-te uma caracterização tua.

Resiliente, persistente, chata, o que me quiserem chamar [risos]. De tantos «nãos» que levo — e que continuo a levar, apesar de muita gente achar que, por já ter conquistado certas coisas, já não levo «nãos», que é tudo garantido, e não é, ainda recentemente recebi um «não» bastante importante —, se não fosse pelo amor à camisola, pela minha resiliência, e falar com marcas e chatear meio mundo para conseguir o que quero, não estava onde estou hoje, de todo. Já tive muitos momentos em que quis desistir e cheguei a estar quase lá, mas depois pensei «não, ninguém vai fazer isto por mim, portanto vou chatear nem que seja o Papa». [risos]

 

Susana, muito obrigado pela entrevista!

 

Podes seguir o trabalho da Susana aqui: @mythicmakeupartistry