Possessão Lisboeta

A história (verdadeira?) de um exorcismo

Existem memórias nas quais as pessoas só se aventuram a tocar ao de leve, com receio de que se tornem corpóreas e saiam para lá dos limites da mente.

Maria Varanda

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Temendo que o medo ultrapasse as barreiras da reminiscência, só em ocasiões esporádicas ouvi conhecidos meus contar a história de uma mocinha de Lisboa, antiga residente de um bairro que já nem sequer existe. Nunca houve espaço para muitas perguntas: quando era pequena, não as queria fazer, com receio do que ouvisse; agora, ninguém lhes ousa dar resposta.

Talvez os anos de experiência e sabedoria ultrapassem o à-vontade de um almoço de convívio, com boa comida, risos e bom vinho. Talvez quanto mais a vida avance, mais precauciosos sejamos no que toca ao desconhecido. Seja uma, outra, ou terceira desconhecida, a história da jovem mulher lisboeta conhecida em primeira mão pelas bocas que a fizeram chegar até mim nunca chegou à maresia do esquecimento. Ficou marcada. Memorizada em mim para que a perpetue, um dia, a sobrinhos ou netos e bisnetos — mas, caso a nenhum dos três, a vocês, que dão os vossos olhos (em impossibilidade de dar os ouvidos) aos testemunhos fiéis ou não que vos transmito.

Foi num bairro sem licença de construção, daqueles que tão tipicamente cobriam as antigas ruas de Lisboa, que a nossa história se passou. O bairro foi demolido faz umas décadas, mas a névoa sombria dos eventos passados jamais abandonará o local ou as mentes de quem conhece.

Quando pergunto aos que pessoalmente presenciaram os variados episódios da mulher a que vamos chamar «Ritinha», atrás dos seus olhos ergue-se a barreira protetora de uma mente que não quer definhar ou ser consumida pelo que os outros desejam saber. O assunto, em almoços e jantaradas passadas (também já vai mais do que uma década), surgia espontaneamente, e os detalhes e testemunhos eram passados antes que a decência e a cautela lhes fechassem as bocas.


A história ter-se-á passado no final dos anos sessenta e é cheia de mistérios.


Os mais céticos falam de uma doença mental por diagnosticar, os incrédulos dizem que nada aconteceu, os mais receosos benzem-se com a cruz do Senhor.  A história é da possessão da «Ritinha» dos quintais, da antiga Lisboa.

Ninguém me sabe dizer exatamente como começou, mas todos repetem as mesmas características, encurtando-se na descrição do que presenciaram ou ouviram contar. Aquilo a que mais fazem referência é ao episódio das pedras da via-férrea que voaram dentro de casa quando a família conseguiu segurar a mulher e impedi-la de correr e fugir. Outros contam o episódio das pedras de maneira diferente, dizendo que as pedras estavam debaixo da cama da mulher. Outros dizem-me que as pedras caíam na casa da família assim que a mulher punha um pé fora da cama.


Quem conta um conto acrescenta um ponto, mas uma coisa é certa: as pedras surgiam do nada.


As evidências de possessão aconteciam por surtos. Num momento, «Rita» era uma mulher normal; no outro, ficava tomada por forças sobrenaturais e desatava a fugir. Tentar apanhá-la era impossível, já que as bocas contam que a mulher saltava muros e corria quintais como se fosse um animal — alturas tremendas numa só investida, impossíveis à condição humana.

Por vezes, as tentativas de fuga eram malsucedidas, após o esforço de vários homens em segurar «Ritinha» se provar fortuito.


Em redor da possuída, a família e os conhecidos rezavam, e a olhos vistos «Ritinha» ganhava um bócio e falava numa voz que não podia ser a sua. Falava na voz do Diabo.


Sei que a levaram à especialidade da Psiquiatria e terá sido internada, mas rapidamente fugiu dos cuidados de saúde. Quem a conheceu diz que andou de médico em médico, certos de que era uma doença da mente, até decidirem colocar o seu futuro nas mãos santas da Igreja Católica. Diz-se que o padre terá chegado atrasado ao exorcismo por percalços no caminho — que o demónio, na presença do sacerdote, terá confessado conhecer a causa. No processo de exorcismo, «Ritinha» foi mesmo vista a levitar, mas terá sido esse mesmo ritual, cujas condições ou duração os conhecedores se recusam (e bem) a revelar-me, que «Ritinha» terá recuperado.

Hoje, desconhece-se o seu paradeiro, o bairro destruído por motivos de «modernização da cidade» e as testemunhas do seu terror espalhadas pelo país e pelo mundo, mas eu folgo em crer que se encontra bem e a salvo do que quer que seja que a tenha torturado nos seus anos de juventude. Talvez até já tenha partido e, se sim, talvez saiba que o seu nome perdura e que há quem não se esqueça do que passou.

O leitor fica agora encarregue de perpetuar a história, de contá-la nos dias chuvosos de inverno e nas noites quentes de verão, de a gravar na mente das gerações vindouras. Quer digam ser verdade ou fantasia, doença ou possessão, que todos os que nos seguirão fiquem a conhecer a história da «Ritinha dos Quintais».