Entrevista à ilustradora Joana Afonso

Os seus álbuns de BD incluem os premiados O Baile e O Bestiário da Isa.

«Mostrar o meu processo serve também para quebrar aquele romantismo de as pessoas acharem que é tudo tão fácil, tão natural. Às vezes, acontece, mas há trabalho. E as pessoas que estão a começar ficam frustradas quando estão a fazer e não sai bem à primeira. Toda a gente passa por isso.»

Sandra Henriques

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Qualquer pessoa com um cão ou um gato pachorrento, brincalhão e «arraçado» de lontra se apega ao Chocolate à primeira leitura d’O Bestiário da Isa. Foi o meu caso. Com um ar bastante menos fofinho, os zombies d’O Baile também me marcaram quando o li pela primeira vez, em parte porque podiam perfeitamente ser um dos meus vizinhos (ou alguém da família, quando vou «à terra»). Sorte a minha (a nossa) que a Joana Afonso gosta de desenhar criaturas e que ainda há de criar muitas mais.
Conversei com a ilustradora sobre o seu percurso e esta aventura que tem sido O Baile e o apoio que o projeto recebeu do ICA para desenvolvimento desta banda desenhada numa longa-metragem de animação. É uma das minhas BD de terror português favoritas. 

 

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Como é que começas no desenho?

É desde sempre. Nunca me lembro de ser doutra maneira. Todos os miúdos desenham, mas eu nunca parei. Sempre desenhei e, como nunca fui muito sociável, estava ali no meu cantinho a ver e a fazer bonecos. Até dizia que queria ser animadora, porque era aquilo que via e porque em casa não havia muitos livros de banda desenhada. Só despertei para a BD com 16 anos e depois as oportunidades foram surgindo. O Baile foi uma delas, porque, na altura, ainda estava na faculdade a fazer experiências de animação. Sempre me envolvi muito no desenho, na parte do desabafo, como não exteriorizava muito oralmente, achava-me desadequada e depois houve situações de bullying, foi assim uma bola de neve. O desenho sempre foi aquela coisa com que pude contar e estava sempre a rabiscar. Não me lembro de ser de outra forma.

Qual é a tua ligação ao terror? Se é que tens alguma.

Nunca fui muito ligada. Gosto na parte da estética, dos efeitos práticos, e agora com esta coisa d’O Baile, de vez em quando, tenho trabalho de casa, do estilo «vê aí o primeiro e o segundo filme do Evil Dead». [risos] Quando foi para fazer o estudo da Alzira possuída, por exemplo, usei os filmes como referência.

Numa entrevista, há uns tempos, dizias que gostavas de desenhar criaturas em geral. Porque é que gostas de desenhar criaturas?

Gosto de tudo o que seja assim, vou dizer, fora da norma, fora dos cânones, tudo o que seja brincar um bocadinho com as proporções. [Gosto da] parte das criaturas, mesmo, mais bicharada. Este último livro [O Bestiário da Isa] é reflexo disso.

Uma das minhas criaturas favoritas desse livro é o Chocolate. Onde foste buscar a inspiração para um animal que é, em termos de personalidade, muito parecido com o meu gato e com o teu cão? [risos]

Eu gosto muito de brincar com formas e desta onda de ver que características é que uma pessoa associa àquelas criaturas, misturar um pouco a cabeça de um com as patas do outro, ou uma mistura entre aqueles para formar aquela criatura que, em termos de personalidade, pode fazer sentido. E não só na personalidade. Desenhar uma coisa que seja apelativa. Não é que os animais, em si, não sejam apelativos, porque eu gosto de desenhar tudo o resto, mas é aquela parte que me dá especial gozo fazer estas brincadeiras. [risos]

Ponderas fazer d’O Bestiário da Isa uma série?

Eu gostava, até porque tinha histórias dela, histórias só com [o sobrinho] Miguel, para um take mais infantil. Ter uma mistura de coisas mais sérias, coisas mais infantis, que seria neste imaginário, mas que funcionaram de forma isolada. Teria de ter tempo, mas tenho várias ideias.

O Bestiário não é um livro infantil, mas pode ser lido por crianças. Era essa a tua intenção?

Não era. O objetivo era fazer uma história que fosse mais ou menos familiar, digamos assim. Não era o meu intuito específico fazer uma coisa infantil. Um livro infantojuvenil, talvez, mas mesmo assim tenho algumas preocupações laborais lá pelo meio. Provavelmente, não me importei muito com o público-alvo. Tinha aquela história, tinha estas inspirações dos bichos, tinha esta nova experiência de ser tia, tinha estas coisas todas a acontecer, e isto foi surgindo, sem grande preocupação de fazer uma história para isto ou para aquilo. Se calhar até fui mais egoísta e fiz a história que eu queria.

E a história que tu querias fazer acabou por ser um sucesso. O álbum ganhou uma data de prémios e isso é sinal de que as pessoas se identificaram com o livro. Sentes-te confortável em receber prémios?

É sempre uma boa afirmação do reconhecimento do meu trabalho, é sempre um bom sentimento. Tento não me focar nisso, é um bónus, mas mesmo assim fico sempre surpreendida. A mesma coisa com O Baile. Era o meu primeiro livro, que ganhou logo o prémio para Melhor Álbum, com a Amadora BD a fazer, logo a seguir, uma exposição retrospetiva do meu trabalho. E eu estava a começar. Felizmente, sempre produzi muito e, na altura, consegui logo encher uma data de salas.

Mas sentes que ainda não fizeste suficiente?

Sim. Eu não mereço! [risos] Há ali tanta gente tão boa! Porquê eu? [risos] Mas, passando essa fase, aceito e é ótimo. Mesmo em termos profissionais, cria algum sururu e ajuda também noutros campos. Ajuda a ser mais mediático. Em termos de divulgação, é sempre bom ter ali aquela estrelinha, nem que seja para as pessoas que querem ver as novidades da BD portuguesa e compram aquele livro porque tem um prémio associado.

E começam a conhecer o teu trabalho, associam o prémio ao nome. Se calhar, quando fazes um álbum novo, mesmo que seja com outro autor, as pessoas compram porque te reconhecem.

Sim, tenho sempre essa esperança.

A banda desenhada portuguesa está de saúde?

Sim, acho que está de saúde, está até bastante viva. Cada vez mais, vejo pessoas — e muito boas pessoas — a publicar, e há uma data de publicações. Mesmo assim, se me perguntares se as pessoas que fazem BD estão a pagar as suas contas com esse trabalho? Não. [risos] De vez em quando, há projetos que são apoiados por bolsas e por aí fora, e já é bom ter essa possibilidade, mas provavelmente, em 90% dos casos, a pessoa faz o trabalho nos intervalos dos outros trabalhos.

Tu, por exemplo, dás aulas na Faculdade de Belas-Artes em Lisboa, a alunos de várias idades. Sentes que eles têm vontade de criar banda desenhada? Conhecem os teus livros?

Eu nem sequer digo nada. Não me sinto bem em dizer o que faço. Estou ali para os ensinar, tenho aquela coisa de não falar sobre mim. Mas, de qualquer das maneiras, há esse incentivo, e eu dou [aulas de] banda desenhada. O que é relativamente recente — esta abertura à banda desenhada na licenciatura em Belas-Artes. Já há professores um pouco mais abertos ao concept art e por aí fora. Todos os semestres me espanto com pessoas que tinham a mesma idade que eu, quando comecei, e já estão a milhas. Normalmente, numa turma de 35 alunos, pelo menos cinco são espetaculares. Há sempre incentivo e, mesmo para os outros, é tentar ver do que é que eles gostam mais e continuar a incentivar. Ainda há muito aquela cultura, na faculdade, de que, se gostas mais de desenhar fadas, é tentar cortar isso, porque acham que é mais infantil. Até pode ser, mas é a partir dali que eles evoluem e que têm a motivação para fazer coisas. Portanto, estar logo a negar isso é contraproducente.

Em nome próprio, já lançaste o Deixa-me Entrar, que foi o teu primeiro livro sozinha. E não é terror.

É mais deprimente. É assim uma coisa melancólica. [risos]

O Zhana foi a seguir?

Sim, foi o meu doutoramento. O Deixa-me Entrar foi o meu mestrado. [risos]

Em que momento é que surge o convite do Nuno [Duarte] para O Baile? Este álbum é a tua estreia.

Sim, até então, tinha feito umas curtas, em nome próprio, maioritariamente em antologias. E experiências que depois não avançaram. Mas nunca tinha feito nada com mais de dez páginas. Na altura que o Nuno me abordou, tinha entrado para o Lisbon Studios, onde ele também estava. Era a mascote, porque tinha 19 ou 20 anos. [risos] Ele viu o meu trabalho e falou-me desta possibilidade, juntamente com o editor Mário Freitas. E eu estava numa fase de aceitar tudo, estava a começar. Foi, por isso, um «sim» imediato. O processo demorou à volta de dois anos, porque trabalhávamos no projeto à medida que conseguíamos. E essa demora nota-se no livro, porque o meu traço, no início, é um pouquinho diferente do final. Pela falta de consistência, há quem tivesse refeito as páginas, mas essa questão nunca se colocou. Pode ser inconsistente, mas eu olho para aquilo como uma evolução.

Deste algum input na evolução da história, ou o Nuno já tinha uma visão muito sólida do que queria contar?

Não propriamente, se bem que ele dava espaço para isso. Agora, com a adaptação ao filme, houve algumas versões do guião e, mesmo a trabalhar com o João, houve sempre aquele diálogo sobre como poderíamos melhorar ou fazer de outra forma.

É a primeira vez que um álbum teu está a ser adaptado a filme. É uma aprendizagem, também, mas sei que vocês os três formaram uma boa equipa.

Sim, tem sido bastante descontraído. Nestes tempos mais livres que tenho tido, também, faço um esboço de uma cena qualquer e vou recebendo feedback. Há sempre bastante partilha de ideias e está a ser muito positivo, isso.

Vais mudar alguma coisa no traço das tuas personagens? Porque isso será, calculo, inevitável. 

Tive de redesenhar tudo. E ter mais atenção em algumas partes, como isto vai para animação. Por exemplo, é bom que as personagens sejam um pouco mais simples em termos de traço. Fazer os model sheets das personagens de frente, de lado, de costas. Basicamente, tive de fazer este estudo para todas as personagens, não só as principais. Há bastantes mais personagens [que tive de criar]. Tenho de desenhar várias visões da aldeia. O João ajuda bastante nisso, porque ele fez uma forma muito esquemática, em 3D, da aldeia, com as casinhas e tudo o mais. Mesmo nos storyboards, ele está a fazer primeiro o animatic com os enquadramentos e só depois disso é que eu desenho as personagens.

Estás muito à vontade a partilhar o teu processo criativo, o teu conhecimento, quer nos livros quer nas tuas redes sociais. Isso é muito importante.

Eu faço porque também gosto de ver isso. Aprende-se, também, com esses processos. E é um bocadinho para mostrar trabalho. Às vezes, estou a trabalhar numa data de coisas, mas não posso mostrar o trabalho final. Mostrar o meu processo serve também para quebrar aquele romantismo de as pessoas acharem que é tudo tão fácil, tão natural. Às vezes, acontece, mas há trabalho. E as pessoas que estão a começar ficam frustradas quando estão a fazer e não sai bem à primeira. Toda a gente passa por isso. [É importante] mostrar o processo de trabalho, das fases, dos erros.

No que é que estás a trabalhar agora, além d’O Baile?

Estou a trabalhar em dois projetos sobre os quais ainda não posso dizer muito. Recentemente, foi lançado o Auto da Barca, ilustrado por mim.