Entrevista a Pedro Cipriano

Fundador do Grupo Editorial Divergência.

«Vamos tentar criar uma nova geração de autores de ficção especulativa. E o terror e a ficção científica estão aí incluídos, não é justo que sejam deixados para trás. E a quem tem dito que o terror não vende: os livros nas segundas, terceiras, às vezes, quartas edições falam por si. Portanto, não, não precisamos de justificar mais.»

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Pedro Lucas Martins

A Editorial Divergência tem sido uma das grandes responsáveis pelo lançamento de novos livros de terror nacionais, apostando consistentemente em novos autores e em novas narrativas dentro da ficção especulativa. Em conversa com o fundador, Pedro Cipriano, falamos do passado, presente e futuro do terror nesta casa editorial.

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A Divergência, desde 2013, publica obras dentro do fantástico ou ficção especulativa, portanto, fantasia, ficção científica e terror. Porquê criar uma editora dedicada a estes géneros? 

Quando nós começamos esta jornada, em 2013, havia uma grande falta de editoras que quisessem apostar nesses géneros. Tínhamos passado uma época dourada durante o Harry Potter, em que todas as editoras queriam publicar ficção especulativa, nomeadamente fantasia. Houve um boom, mas, como os tempos mudam, a certa altura parece que todas as editoras em Portugal se esqueceram da fantasia, da ficção científica e do terror e houve um grande interregno. Algumas editoras especializadas no fantástico deixaram de apostar nos autores portugueses. Foi nesse contexto que surgimos, e não fomos os únicos, mas infelizmente, muitos desses projetos já não existem. Começámos muito lentamente, só começámos a publicar realmente a sério a partir de 2018/2019. Nesses primeiros 5 anos, publicámos muito pouco, mas íamos fazendo o que podíamos. Foi sempre essa a ideia.

Como disseste, a Divergência é das poucas editoras nacionais a apostar no terror em específico, e há vários nomes do terror nacional que foram e ainda são publicados pela Divergência. Em romance, em antologias, em não-ficção. Estou a pensar, por exemplo, na Enciclopédia do Terror Português. É vossa intenção continuar por este caminho? 

Sim, e posso revelar já que vamos ter uma nova edição da Enciclopédia do Terror. A primeira edição demorou mais ou menos um ano e pouco a esgotar, o que nos deixou também muito contentes, o facto de haver tanta gente interessada no terror português. Quando começámos esse projeto, estávamos um bocadinho a medo.

Que apropriado! [risos] 

Sim. [risos] Pensávamos que meia dúzia de pessoas ia querer isto, mas temos tido uma resposta muito positiva. As pessoas continuam interessadas na história do terror português. [O livro] não fala só sobre literatura, fala também sobre banda desenhada, cinema, mulheres que escrevem terror, terror infantil, um pouco também das artes performativas, de jogos. Fala de um pouco tudo o que se fez em Portugal em termos de terror nos últimos anos. E, além disso, também temos algumas antologias que puxam para o terror, algumas de maneira intencional, outras não. Por exemplo, a Trebaruna, que é uma das nossas chancelas, todos os anos faz uma antologia com um tema aberto. Não implica necessariamente terror. No entanto, também temos de dizer que a nossa equipa tem alguma culpa, porque os temas também se prestam ao terror: Sangue, Insanidade… No entanto, apesar de atrair muitos escritores de terror, não considero que seja uma coisa fechada. Se quiserem submeter um policial, fantasia, romance, ou ficção científica nesse tema, também será bem-vindo. Na parte dos livros, vamos querer continuar a apostar [no terror]. O último livro que publicámos [no género] foi o da Raquel [Fontão], Será de Madrugada. Teremos agora [para 2025] outros que ainda não posso divulgar. Também temos a nova [quarta] edição do teu livro [As Sombras de Lázaro], que irá surgir muito em breve. Continua a ter procura, as pessoas continuam interessadas. As primeiras obras que publicámos foram de terror e, para usar outra vez a expressão, estávamos também com um bocadinho de medo. Sabíamos que fantasia vendia, mas [com o terror] estávamos um bocadinho receosos. A nossa primeira experiência no género foi Os Monstros que nos Habitam, em 2017. Foi uma aposta calculada, porque tínhamos noção de que tinha alguns elementos de terror, mas também tinha romance e paranormal, e teríamos uma boa hipótese de o vender. Mas a nossa surpresa é que o livro também já vai na terceira edição e continua a vender. Outra experiência muito interessante que fizemos, aí já estávamos um pouco mais confiantes, foi Os Medos da Cidade. Obrigámos as pessoas a escrever qualquer coisa de assustador, mas numa cidade portuguesa, porque percebemos que as pessoas escreviam histórias assustadoras, mas não se passavam em Portugal. Há também os livros-jogo, O Sacerdote das Trevas e A Casa dos Espíritos. E temos ainda uma outra obra que, apesar de não ser de terror, tem elementos muito fortes. Estou a pensar no Lovesenda, de António de Macedo, [que] tem elementos de terror muito interessantes, embora o autor tivesse querido classificá-lo como fantasia.

Nesse sentido, uma vez que já me falaste aqui de várias antologias e até de um livro recente, Será de Madrugada, qual é a tua perspetiva do percurso da literatura de terror, desde que fundaste a Divergência? Qual é a tua perspetiva de evolução?

Tem crescido aqui dentro. Neste momento, estamos ativamente a tentar promover mais terror e ficção científica do que fantasia. Em termos de submissões, está desequilibrado, ou seja, recebemos muito mais submissões de fantasia do que dos outros dois géneros. Mas também percebemos que, de fantasia, ainda há algumas editoras de Portugal a publicar autores portugueses; terror e ficção científica é muito mais raro. E nós assumimos: vamos tentar publicar aquilo que está a ser mais ignorado. Porque foi sempre dessa ideia que surgiu a Divergência. Vamos tentar criar uma nova geração de autores de ficção especulativa. E o terror e a ficção científica estão aí incluídos, não é justo que sejam deixados para trás. E a quem tem dito que o terror não vende: os livros nas segundas, terceiras, às vezes, quartas edições falam por si. Portanto, não, não precisamos de justificar mais. Não são tiragens tão grandes como algumas editoras, fazemos tiragens à medida do que a editora é, mas estamos plenamente satisfeitos com os resultados das nossas apostas. Esperamos que os autores continuem a corresponder e a enviarem-nos manuscritos, a participar nas nossas antologias. Acho que podem esperar que a Trebaruna, pelo menos num futuro próximo, continue a publicar todos os anos uma antologia aberta sem género definido, que pode ser explorada para terror e para tudo o mais. E é possível que nos próximos dois anos apareçam algumas antologias temáticas na Divergência, que puxem especificamente para o terror.

Vocês publicaram recentemente O Bobo e o Alquimista, do David Soares, uma grande referência no terror nacional. Há alguma coisa que possas adiantar em relação a colaborações futuras da Divergência com este autor? 

Nós temos interesse em republicar alguns romances do David, mas também novas obras que ele está a preparar. Será um assunto para ficarem atentos, talvez em breve possa haver novidades sobre o assunto. De momento, não quero especificar mais. 


E há mais alguns nomes que possas destacar do catálogo da Divergência ou das suas chancelas no que respeita ao terror? Já falámos da Raquel Fontão, David Soares…

Temos mais dois ou três livros assim, de terror, no próximo ano, romances e stand alone. Alguns autores que ainda não tinham sido publicados em Portugal, pelo menos que eu saiba. Temos alguns manuscritos que já tínhamos em nossa posse há um ou dois anos e, às vezes, é difícil conseguirmos publicar tudo rapidamente, pela nossa dimensão. Estamos a tentar ter um plano editorial muito ambicioso para o próximo ano [2025], o ano mais ambicioso de sempre. Muitos desses autores finalmente irão ver os seus livros cá fora. E, se não estou em erro, pelo menos quatro livros de terror estão entre os livros que iremos publicar. Acho que vocês vão ficar muito contentes com certas obras que eu já tive o prazer de ler. E acho que os fãs do terror vão gostar de ter mais estas adições, mais estes autores a escrever. E, como sabes, mando muitas alfinetadas aos meus autores sobre quando é que vem o próximo [livro]. Há certas e determinadas pessoas aqui que andam há seis anos para mandar um segundo manuscrito. Não vamos apontar nomes. Acho que é uma coisa muito importante, não publicar o primeiro livro e ficar-se por aí. E eu defendo que os autores, pelo menos de dois em dois anos, deviam trazer algo novo para manter o interesse dos seus leitores. Porque acaba por ser um bocadinho de consistência. Já tivemos autores que se promovem melhor e outros que não se promovem tanto. Existe um pouco de tudo, e o que noto é que os autores que vão mais longe são aqueles que são consistentes. Às vezes, não são aqueles que têm a melhor linguagem, não são aqueles que se promovem melhor. São aqueles que são consistentes. E isso não é só para os autores de terror, é para todos. Se assumes que vais publicar um conto todos os meses, assumes esse compromisso e depois cumpres. Isso, ao longo do tempo, vai trazer grandes retornos. E a mesma coisa com os romances. E, cada vez que publicas algo, conseguimos promover tudo o que já publicaste. Tem um efeito multiplicativo. Essa é uma das coisas que eu gostaria de ver mais em alguns dos meus autores, especialmente os de terror, uma certa regularidade. Acho que toda a gente ficaria muito contente com isso.

Nesse caso, já falaste da parte da consistência, falaste também do facto de a Divergência ter alguns manuscritos em sua posse, que irá publicar. O que é que a Divergência procura num bom livro de terror? Isto para referência de futuras submissões. 

Uma coisa que tem funcionado bastante bem é termos os cânones do terror, mas sempre com um cunho pessoal. Posso dar o exemplo [do livro da] Raquel Fontão. Tem a veia da música — terror e música. O do Nuno Gonçalves tem terror e medicina. Eles conseguem misturar as experiências pessoais no seu livro. Isso fica muito mais interessante do que simplesmente um livro de terror sobre alguém que vai para uma casa assombrada onde acontecem coisas más. Nós já lemos isso. Toda a gente já leu isso e não precisa de ler mais 50 livros iguais. Não consigo dizer aqui a fórmula porque não estou à procura de fórmulas. Aliás, se ler um livro que me submetam e achar que já li aquilo, é um não. 

Estás à procura de originalidade. 

Estou à procura de livros que digam qualquer coisa. Tenho a certeza de que um livro que tem esses cunhos pessoais vai gerar muito mais identificação por parte do leitor, muito mais interesse do que um livro que é oco. Podia ser [sobre] um médico, um farmacêutico, um arrumador de carros e não faz qualquer diferença para a história. Quando chega ao ponto de não nos interessar realmente quem é a personagem principal, estamos ali a perder identificação. Isso é válido para qualquer história, mas especialmente no terror, em que temos de sentir aquele calafrio, em que vão acontecer coisas más. Termos alguma identificação com as personagens ajuda-nos a sentir mais e torna o livro muito mais poderoso. Gostava de ver mais dos autores portugueses a apostar mais nisso. Porque o que acontece com muitas das submissões é que estão cheias de lugares-comuns em termos de enredo. Ou seja, sinto que já li aquilo — e melhor. Não precisam de ter linguagem à Saramago ou Valter Hugo Mãe. Uma história poderosa pode ser escrita em linguagem simples, com um cunho pessoal que vai funcionar. Aliás, como editor, mas isto é uma preferência pessoal, prefiro livros que tenham uma linguagem simples, em que a linguagem não impacte a história, a livros que tenham uma linguagem superelaborada. Obviamente que há muitos editores em Portugal que preferem que aquilo não tenha assim grande conteúdo, mas que a linguagem seja espetacular, que seja um prazer de ler. Não é a minha abordagem, mas também fico contente de haver várias editoras, várias abordagens, porque, se toda a gente pensasse da mesma maneira, só precisávamos de uma editora em Portugal. Toda a gente ia publicar exatamente a mesma coisa. Eu gosto de livros que sejam legíveis porque também cumpre uma das missões da Divergência, que é tornar a ficção especulativa mais acessível a todos. E como é que conseguimos isso? Através da linguagem. Também temos alguns livros que têm linguagens mais eruditas. O do António de Macedo, por exemplo, é um bocadinho mais puxado; ele inventou cinco ou seis palavras. Mas temos tendência para livros com linguagem mais simples. E outra coisa que tentamos ter como bandeira é preços acessíveis. É uma grande luta já há muitos anos, mas conseguimos manter os nossos preços na média do mercado, às vezes até ligeiramente mais baixos, tornando os livros acessíveis. Uma das maiores queixas que se ouvem em Portugal é que não se lê porque os livros são caros. E a outra é que os autores portugueses só escrevem aquelas coisas herméticas, indecifráveis. Quando alguém fala em literatura portuguesa, [fala de] António Lobo Antunes, Valter Hugo Mãe, Gonçalo M. Tavares. Sim, é boa literatura, mas, para muitas pessoas, é totalmente incompreensível. 

Daí a tua preferência editorial e pessoal. 

Dou o exemplo do Será de Madrugada, que foi o livro que me passou mais recentemente pelas mãos. É interessante para uma pessoa que liga à parte da linguagem, mas interessa também a uma pessoa que tenha uma grande formação em música. Ou seja, é erudito e suficientemente interessante para uma pessoa que esteja no mundo da música. Vai apanhar detalhes que vão maravilhar, mas está escrito de uma maneira a que quem não perceba nada de música também consiga apreciar o livro. Eu acho que é essa a magia, porque, quando o autor escreve o livro, ele dá o livro ao mundo. Depois, a partir daí, o que acontece é que cada pessoa vai ter uma experiência única com o livro. E o que queremos é que o máximo de pessoas tenha uma experiência agradável. Não queremos uma barreira, uma barreira de entrada, o que não quer dizer que não haja camadas — e que pessoas mais eruditas ou mais informadas, mais sensíveis, não as encontrem.

Certo. Já falámos aqui do facto de a Divergência, no próximo ano, ter vários livros de terror alinhavados e de algumas perspetivas das quais ainda não podes falar. Em termos de outros projetos que tenham para o futuro e que incluam o terror, há mais alguma coisa interessante que tenhas em vista?

Em breve, deveremos estar a divulgar um grande projeto Internacional em que estamos envolvidos, que irá envolver um livro de terror nacional. Irá fazer com que alguns dos nossos autores, tudo a correr bem, sejam publicados lá fora, o segundo ponto da nossa agenda na Divergência. Trazer coisas anglo-saxónicas para Portugal toda a gente faz, mas quantas editoras é que fazem o esforço para conseguir meter outros países a ler autores portugueses? Isso acho um desafio ainda maior, mas acho que vale bem a pena, porque há muitos autores que são demasiado bons para ficar só em Portugal. A nossa expectativa nos próximos  três anos, com este projeto, é mandar três livros lá para fora. A minha vontade era mandar trinta, porque acho que temos aqui trinta bons livros que podiam ser lidos em qualquer parte do mundo — mesmo os livros com algum cunho português, porque são uma porta de entrada para a nossa cultura, para a nossa maneira de pensar. Porque nós também estamos muito infetados com a maneira de pensar anglo-saxónica, que permeia toda a nossa sociedade em séries e filmes e livros e tudo. Às vezes, até parece que nos esquecemos das nossas individualidades, e acho muito interessante trazer coisas um bocadinho diferentes. Esse projeto, a correr bem, também permitirá trazer alguns autores de línguas menos comuns para Portugal e traduzi-los para português. Uma das minhas ideias [iniciais com a Divergência] era não só publicar pelos autores que já existem, mas também encorajar os autores ou aqueles que gostavam de ser autores a começarem, continuarem ou regressarem. E já tivemos muitas dessas experiências, de autores que regressaram depois de grandes hiatos, autores que começaram por causa de nós e de autores que continuaram por causa de nós. Isso é uma coisa que me deixa muito feliz. Quando vejo, por exemplo, o segundo e o terceiro romance de um certo autor, e a sua evolução. Posso referir um livro que publicámos recentemente, A Conversão dos Nus, de Nuno Ferreira. Ele deu um salto qualitativo quando ganhou o Prémio António de Macedo [em 2023]. O que ele escrevia? Bom. Mas o que ele escreveu com este livro é mind blowing, um nível acima, e também puxa um bocadinho para o terror. E eu fico muito contente quando vejo autores que tinham já um bom nível a superarem-se. O mérito é do autor, obviamente, mas acho que temos ali aquele bichinho de puxar pelo autor. 

Pedro, desejo todo o sucesso à Divergência nestes projetos e em todas as vossas publicações. Muito obrigado pelo vosso trabalho. Muito obrigado por esta entrevista também. E esperemos grandes coisas dentro do terror e fora do terror para a Divergência e as suas chancelas no futuro. 

Muito obrigado pela entrevista e obrigado por me receberem aqui. E também esperamos que a Fábrica continue a contribuir, porque tem contribuído em muito para espevitar os autores, especialmente com as vossas oficinas de escrita. Vocês têm trazido muito bons autores que depois vêm trabalhar também connosco e acho que é muito importante o vosso trabalho editorial. Acho que faltava, porque a Divergência dificilmente algum dia terá capacidade para publicar tudo o que merecia ser publicado em terror. Acho que é muito bom, e vocês não são os únicos, há outros projetos com mérito que também estão a pegar na parte da ficção especulativa. Isso deixa-me muito contente, porque, durante alguns anos, estivemos orgulhosamente sós. E essa foi a fase mais difícil para nós. Tivemos de rejeitar muita coisa boa e muitos autores que estiveram dois, três anos à espera, porque não tínhamos capacidade. E o facto de haver concorrência ou outras alternativas obriga-nos a passar a um nível acima, a não ficar para trás, a ser cada vez melhores e a aprender não só com os erros dos outros, mas também aprender com as coisas que eles fazem bem. No geral, o mercado sai sempre beneficiado. Os leitores saem beneficiados porque têm mais escolha, mais qualidade. Os autores saem beneficiados porque deixam de estar dependentes apenas de uma casa para publicar, têm opções. E as próprias editoras também saem beneficiadas, porque toda a gente tem mais a ganhar. Fico contente de termos passado esta fase de quatro ou cinco anos do «orgulhosamente sós» para termos companhia outra vez, e espero que esta companhia que agora se juntou a nós não desapareça, que continue aqui para, lado a lado, conseguirmos puxar pela ficção especulativa — e em especial para o vosso terror.