Entrevista à realizadora Cristèle Alves Meira

A sua longa-metragem de estreia, «Alma Viva», é o filme português para a candidatura à nomeação para o Óscar de Melhor Filme Internacional

«Queria levar para o cinema esta realidade transmontana, com as suas terras queimadas, a sua herança celta, próxima da mitologia do western com o seu lado “fora da lei” à margem da sociedade»

Não sei se posso dizer isto em relação a este filme, mas Alma Viva é corajoso, no sentido em que Cristèle Alves Meira conta a história que quer contar. Sem o espartilho de um género específico, mas indo buscar elementos ao terror e ao fantástico com conta, peso e medida quando precisa deles para passar a mensagem.

Foto: Aurélie Lamachère

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Sandra Henriques

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Um dos meus aspetos favoritos neste filme é que ele não é uma ficção caricaturada de um drama familiar em Trás-os-Montes, nem é preciso ser-se transmontano (nem português) para se identificar com a história e com aquela família. As pessoas discutem e dizem palavrões, fala-se com sotaque, mas não de forma a excluir espectadores. Isso era importante para si? Essa universalidade a partir da regionalidade, se pudermos chamar-lhe assim?

Quando filmo esta região, esta aldeia transmontana, vou olhar para a minha própria identidade. Por isso, parecia-me impossível não olhar para as pessoas, as paisagens, a cultura local com sinceridade e fazer todo o possível para não cair na caricatura ou nos estereótipos sobre a ruralidade, a forma de falar da gente do campo e do norte de Portugal, dos emigrantes também, que sofrem de muitos clichês. Apontei certos excessos na forma de se comportarem como uma crítica doce e subtil do que se passa nas famílias divididas entre aqueles que partiram e regressam no verão com um poder económico maior e que, sem querer, exageram na demonstração da ascensão social, construindo casas enormes ao pé das casas mais tradicionais de pedra, exibindo carrões e piscinas. A comédia que atravessa o filme permite-me criar uma distância carinhosa com o que estou a dizer sobre esta realidade social. E é óbvio que esta realidade é própria de outros países, seja qual for o lugar. Há sempre estas tensões nas famílias que vivem essa separação, esse êxodo forçado por razões económicas para outros países. É óbvio também que, nas pequenas comunidades isoladas, se criam guerras entre vizinhos e litígios que muitas vezes se tornam sobrenaturais. São o pretexto para alimentar crenças sobre a maldição e o mau-olhado, crenças ancestrais que continuam ativas hoje. Queria levar para o cinema esta realidade transmontana, com as suas terras queimadas, a sua herança celta, próxima da mitologia do western com o seu lado «fora da lei» à margem da sociedade, com uma certa brutalidade nas relações humanas, na forma de falar, assumindo as suas contradições entre amor e maldade, luz e sombra, riso e lágrimas, pagão e sagrado, maravilhoso e terror. O filme constrói-se a partir dessas dualidades.

 

O facto de ter usado atores amadores, da própria aldeia, ajudou-a a criar esse ambiente mais realista. Foi uma escolha consciente, desde o início, ou foi crescendo à medida que ia escrevendo o filme?

Desde os meus primeiros passos no cinema, misturei atores não profissionais e atores profissionais no elenco dos meus filmes. Quando comecei a escrever Alma Viva, não tinha ainda feito filmes de ficção. Simplesmente tinha realizado dois documentários (Som & Morabeza e Born in Luanda). Enquanto estava a escrever e a financiar Alma Viva, aproveitei para realizar quatro curtas-metragens (Sol Branco, Campo de Víboras, Invisível Herói e Tchau Tchau) que me permitiram questionar o cinema que eu queria fazer, preparar o terreno para a primeira longa. E agora, com a distância, observo que todos esses filmes estão ligados por décors ou atores que têm algo em comum. E já consigo ter uma noção de que tipo de cinema estou a tentar criar. O que sobressai quando vou contar uma história em cinema é esta possibilidade que ele nos dá de mergulhar e de olhar para a realidade sem sentir que estamos a fingir olhar para ela. A câmara é uma ferramenta que nos permite olhar um rosto de perto como se fosse uma paisagem, um rosto bem filmado fala mais do que um diálogo. A câmara tem o poder de quebrar muros e olhar pela fechadura de uma porta (como faz a Salomé no primeiro plano de Alma Viva), de entrar em lugares íntimos e tabus. O que me anima e me fascina também é jogar com os limites da realidade e da ficção. Já sabemos que fazer cinema é sempre uma representação da realidade, que não é possível atingir uma verdade. Mas o que eu tento explorar é conseguir criar condições no momento da rodagem para que «o extraordinário possa surgir de uma situação ordinária». Peço emprestada esta formulação a um cineasta importante para mim, Abbas Kiarostami. O objetivo não é fazer um cinema naturalista preguiçoso, mas criar as condições para que a câmara consiga captar a vida para a revelar ainda mais forte do que na vida real. Quando os espectadores ficam com dúvidas sobre se estão a ver um documentário ou ficção, fico satisfeita, porque isso quer dizer que tudo o que está no filme lhes parece credível. Essa credibilidade é muito importante para mim, tem a ver com o meu gosto de espectadora de querer acreditar na história que me contam. Quando era criança, o meu jogo favorito era contar mentiras aos meus pais e aos meus amigos e, até eles acreditarem mesmo, não revelava a mentira. Fazer filmes, para mim, é ficar ligada com a criança que era e que quero ainda ser, para despertar o meu imaginário e contar histórias, para escapar a uma visão do mundo que nos traz a realidade que não me convém.

 

Os elementos sobrenaturais são usados de forma muito subtil, mas também com muita confiança e intencionalidade. Há uma boa medida de sobrenatural misturada com a realidade, e é bastante claro que esta era a mensagem que queria passar. Sei que a Cristèle não considera o Alma Viva um filme de género, mas inspirou-se no género fantástico ou de terror para estes momentos do filme?

A questão do género esteve presente em todas as fases de fabricação do filme: no momento da escrita, durante a rodagem e até na composição musical. Claro que tive de ver filmes de terror para conseguir formular este meu desejo de me distanciar dos códigos do género. Jacques Tourneur influenciou-me e o Alfred Hitchcock também. Os clássicos tornam-se incontornáveis! No Alma Viva, peço emprestados códigos e ferramentas ao género fantástico, mas sem ser excessiva, sempre de uma forma muito minimalista. E confesso que houve muitas versões do argumento onde as influências do Giallo estavam mais presentes. Foi graças a conversas com o Rui Poças (DOP – Fotografia) e o Julien Michel (conselheiro artístico) que aceitei aliviar certas cenas de efeitos que não serviam para nada. As crenças nos espíritos e na possibilidade de entrar em contacto com os mortos faz parte da realidade das personagens, e desta comunidade que filmámos. Não era necessário, e até era demais, querer de forma muito voluntária abusar de efeitos superficiais de luz, som, movimentos de câmara. Do ponto de vista desta criança que é a Salomé, a magia existe em pequenos detalhes: um céu estrelado, o grito de uma coruja, o ritmo dos tambores, o milagre da chuva. A palavra-chave que me ajudou sempre a manter a distância justa com o género fantástico foi estar sempre atenta a pôr-me ao nível desta criança. De confiar na minha personagem e de não querer ter um passo de avanço sobre ela. A Salomé é que nos guiava.

Li, numa outra entrevista sua, que considerava que este era um filme feminista sem ser abertamente político, e isso é transmitido de forma bastante eficaz (na minha opinião) ao longo do filme. Era importante mostrar essa feminilidade no filme através da força (e da fraqueza) daquelas personagens? Sobretudo da Fátima (Ana Padrão), que oscila entre quem quer ser e o que os outros acham que ela deve ser, ainda por cima sendo a «irmã sacrificada», que não emigrou e acabou por ficar a cuidar da mãe.

As mulheres do filme de todas gerações são caracterizadas pela capacidade de se emanciparem de um meio fechado, de aceitarem estar na margem, assumirem a sua parte de violência e de maldade, de não entrarem no destino e no plano convencional que a sociedade quer para elas. As mulheres do filme são poderosas e misteriosas, excessivas e sensuais, criam um certo fascínio e ao mesmo tempo um certo terror. Esta complexidade do retrato é muito importante para sair de uma visão linear sobre o ser humano. Somos feitos de contradições. E a Fátima incarna bem estas contradições. Ela queixa-se da irmã emigrante em França, de sacrificar a vida para cuidar da mãe e ficar na aldeia a trabalhar no campo, de só ter as galinhas. Mas a verdade é que vive um amor transgressivo e proibido com a vizinha Glória. Se ela não quis emigrar, é por causa deste amor não assumido por outra mulher.

 

O funeral (e sem querer estragar o filme a quem ainda não o viu), desde a saída da casa até ao cemitério, é tudo menos pacífico, e a cerimónia final acaba por não ser religiosa, mas um acontecimento quase «pagão», de despedida, com os elementos da terra, da água e do fogo à mistura. Aquela mulher, na morte, só poderia ser como foi em vida, uma «bruxa» (uma mulher independente que segue as próprias regras). Como foi a construção dessa personagem? Há algum elemento autobiográfico na história dela ou ela pode ser vista como um conjunto de muitas mulheres?

A personagem da Avó foi inspirada por um conjunto de mulheres que encontrei no meu caminho. É um pouco da minha própria Avó, da Avó de uma jovem estudante em antropologia que escreveu um master sobre a Avó dela que era médium, da própria Ester Catalão (a atriz que a interpreta). É uma personagem que vai contra a corrente das mulheres da sua idade, tem a liberdade de assumir os seus desejos profundos, de lidar com os invisíveis e com a sua própria sensualidade. Quando vou escrever uma personagem, tento sempre fugir aos preconceitos para entrar num retrato mais imprevisível, menos esperado.

 

O filme tem passado por vários festivais, foi selecionado para representar Portugal na candidatura para o Óscar de melhor filme internacional, e está, desde 3 de novembro, em exibição em várias salas portuguesas. Em algum momento pensou que a sua primeira longa-metragem pudesse chegar aqui? Como é que tem sido a experiência? 

Não pensava chegar até aí porque, quando estava a escrever ou filmar, o meu foco era conseguir realizar o sonho de criar este filme, de dar vida a esta história. Mesmo que, no fundo, tivesse a noção da força do que estava a contar. Sempre acreditei neste projeto porque, se não acreditasse no potencial do meu trabalho, ninguém o faria por mim. Conseguir uma primeira longa é ter perseverança e convicção máxima de que o projeto vale a pena. Porque no caminho vamos cruzar-nos com muitas pessoas que vão tentar destruir o nosso sonho ou desiludir-nos. Quando me punham K.O., levantava-me para recomeçar sempre com essa ideia de que um dia ia lá chegar. Acho que o maior talento é este, acreditar sempre! E depois, é preciso muita força de trabalho.