Entrevista ao realizador David Rebordão

Quase a fazer 20 anos, a curta A Curva tornou-se viral, fazendo de Teresa Fidalgo um dos fantasmas mais conhecidos da Internet.

«Gostava de fazer uma longa-metragem de terror que metesse as pessoas a sair da sala a correr.» 

Sandra Henriques

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Estamos em junho de 2023, e o artigo mais recente que li a explicar que a história do fantasma de Teresa Fidalgo é pura ficção tem menos de dois meses. A curta portuguesa de found footage, A Curva, viralizou muito antes de este termo existir ou ser um fenómeno.

Nada foi por acaso, como descobri ao longo desta conversa com David Rebordão, mas o que o realizador não estava à espera era que o filme ganhasse vida própria.  

 

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A minha primeira pergunta é uma espécie de tira-teimas. A história da Teresa Fidalgo já existia e tu adaptaste-a para A Curva? Ou foi criada de raiz? Já ouvi as duas versões.

É engraçado porque ambas as versões têm uma percentagem de verdade. [risos] Ou seja, existia um mito urbano, que se passava na curva do Mónaco [em Oeiras], uma curva onde há muitos acidentes e onde muita gente morria na altura. Era fácil de associar uma alma penada àquele local. A história que eu ouvia contar era de duas miúdas que, no regresso da discoteca, davam boleia a um rapaz, que era muito calado. A certa altura, elas perguntavam para onde é que ele ia, e ele respondia: «foi ali [na curva do Mónaco] que tive um acidente e morri». E, quando as miúdas se viravam, ele tinha desaparecido. Esse é o mito que serve de base para a curta-metragem A Curva. Como autor, tive a liberdade de alterar as coisas, tornar a história mais visual, mais cinematográfica.

E tu, como personagem, foste o único sobrevivente daquele acidente em Sintra!  

Mas há quem diga que não! [risos] Tudo isto é muito divertido, porque li e vi milhares de histórias relacionadas com o evento, criadas pelos internautas, sem qualquer fundamento a não ser a ficção e a invenção. Vi histórias que diziam que a minha campa estaria num cemitério perto daquela zona em Sintra. [risos] O que não poderia ser verdade, porque o filme foi rodado em Belas. [risos]

O artigo mais recente que fala da Teresa Fidalgo, e que vem desmentir os acontecimentos d’ A Curva, é de abril de 2023. Ainda há artigos sobre esta história. É extraordinário. Tinhas noção, na altura, de que ias criar este hype todo à volta do filme?

Nem nas minhas mais loucas fantasias! Ninguém, sendo verdadeiramente honesto, diria que vai fazer um filme que vai se tornar um dos vídeos virais de maior sucesso de todos os tempos. Agora, a preparação e a intenção de ele se poder tornar viral está lá toda. Há pessoas que acreditam que aquilo é verdadeiro. Há feiticeiros, em zonas onde a crença em fantasmas é muito forte, que usam o vídeo da Teresa [Fidalgo] para provar que existem espíritos! São 20 anos de histórias inacreditáveis. Quando fiz o filme, era um jovem realizador, e este era o meu primeiro projeto. Fi-lo com profissionais da área: produtor, caracterizadores, atores da Escola Superior de Teatro e Cinema. Eram pessoas que, se não estavam a trabalhar já na área, tinham formação e estavam a caminho de trabalhar nela. Resolvi fazer algo que pudesse ter um efeito viral na Internet, que as pessoas vissem, se assustassem e possivelmente pensassem em partilhar. As condicionantes para um determinado tipo de vídeo estavam lá, mas o que se passou a seguir nunca podia prever nem imaginar. Nunca imaginei que as pessoas iriam fazer encenações em casa [do filme] e filmá-las. Se alguém, um dia, quiser fazer um documentário sobre este fenómeno, tem material que nunca mais acaba. As pessoas inventaram histórias para a Teresa, fizeram músicas, desenhos. Um dia, hei de morrer, como todos nós, mas a Teresa vai cá ficar, enquanto houver Internet.

O teu filme funciona porque é um found footage «pensado», ao contrário de um Blair Witch Project, por exemplo.

Quando a Teresa Fidalgo foi criada, não havia YouTube; havia uma coisa chamada Google Video. [risos] E foi um internauta que sacou da minha página do Vírus (outra curta de terror para a qual eu fiz a curta A Curva, para chamar a atenção e arranjar financiamento, e que até é falada durante as gravações do found footage — a própria curta é um vídeo de repérage para o Vírus por um grupo de cineastas e produtores), sem autorização, claro. Ele legendou aquilo tudo em inglês e enviou não sei para onde, e começou a espalhar-se. Um dia, o meu irmão enviou-me um e-mail com um link para ver o vídeo, que tinha recebido não sei de quem, e já havia versões legendadas em espanhol, chinês, francês, italiano. Quando comecei a ler os comentários nessas várias versões online, era um mundo. Não só se discutia fervorosamente a veracidade do vídeo, como recebia mensagens de portugueses no estrangeiro, [cujos colegas de trabalho] perguntavam se a história da Teresa Fidalgo era verdadeira! [risos] Lancei A Curva muito próximo da estreia do Blair Witch Project, porque não faço filmes só para mim, quero conquistar o público em todo o mundo. Sempre foi assim e há de ser sempre assim. Na altura, tive de criar uma estratégia. Não podia criar um filme português [mais de autor, como estamos habituados], porque isso não me ia levar a lado nenhum. Vi o sucesso que tinha sido o Blair Witch e deste novo tipo de cinema que tinha sido criado: o found footage. Decidi investir nesse formato, de baixo orçamento, e fazer um filme português de found footage, que era algo que ainda estava a nascer e tinha ainda espaço para crescer, mas decidi fazer algo mais do que o Blair Witch, porque esse filme não mostra nada. Não vês um único fantasma o filme todo. Optei por fazer [o filme] no mesmo estilo até certo ponto, mas depois surpreender com qualquer imagem, e de forma breve. Foi tudo pensado assim.

Inclusive seres um dos atores na curta?

Estou no filme como cameraman por duas razões. Uma, por uma questão técnica. Como realizador, o mais perto que posso estar de uma cena é se for eu a fazer a câmara. Aí, sei o que quero mostrar, sei para onde tenho de apontar a câmara, em vez de ter ali um operador a quem tenho de dar indicações ou dar a câmara a um ator. Porque os atores têm de estar concentrados nas deixas de ação e não de movimento de câmara. A segunda razão é que, até àquela altura, achava as interpretações dos atores fraquíssimas, porque os atores usam uma técnica teatral que não traz realismo às cenas. Sempre combati esse tipo de representação no cinema, em todos os meus filmes. Tentei, com aqueles atores, que eles se esquecessem de muitos dos cânones que estavam a ser ensinados na escola, mas que ainda não estavam completamente impregnados, e dessem algum realismo à cena. Eu ia no banco de trás como o catalisador das conversas. Eles tinham umas deixas para falar de algo em determinada altura, e já se sabia como é que tinha de ser a reação. A única deixa que estava mais ou menos escrita foi a da Teresa Fidalgo. A minha presença em cena deve-se pura e simplesmente a esses dois motivos: técnica (por causa da câmara) e ser catalisador das conversas e avançar com as cenas.

Tu deixas que os espectadores fiquem na dúvida se o filme é ou não real. Conseguiste isso muito bem. 

No Japão, havia um programa de televisão sobre os vídeos mais assustadores da Internet. A partir de determinada altura, a Teresa Fidalgo era presença não só assídua como foi a número um em vários programas. Era o vídeo mais assustador para os japoneses, que têm uma cultura completamente diferente da nossa. O que nos assusta não é o mesmo que os assusta, e eles têm filmes de terror aterrorizadores. Portanto, uma personagem como a Teresa Fidalgo tê-los afetado como afetou foi qualquer coisa fenomenal. E eles não só me pagavam para o vídeo passar lá — e para um jovem realizador em Portugal, qualquer ajuda é bem-vinda — como me contrataram para fazer vídeos de found footage para eles passarem no programa. Fazia os vídeos aqui em Portugal, com atores portugueses, e usava a técnica que tinha desenvolvido para fazer filmes que parecessem reais. Devo ter feito uns seis ou sete vídeos. Mais tarde, cheguei a escrever uma longa-metragem com a mesma técnica, mas [o cinema em] Portugal é muito complexo. No que diz respeito a orçamento e apoios, o terror não existe.

Consideras-te um realizador de género, ou preferes não te associar a um rótulo?

Decididamente, sou um realizador de géneros. Acho que ainda só não fiz comédias românticas (porque não gosto e acho que nunca conseguiria fazê-las bem) e filmes pornográficos. [risos] Porque eu tenho dramas, thrillers, terror, comédia (inclusive cheguei a ter um canal de comédia, que foi uma experiência interessante), ficção científica (com o filme RPG, a longa-metragem). Portanto, em termos de géneros, venham eles. Gosto imenso de variar porque todos os géneros têm a sua técnica, a sua construção narrativa específica. Todos me fascinam. Também fiz um filme de fantasia com animação, em colaboração com o Cláudio Jordão, A Tua Vez.

Nesse, não há terror, nem jump scares?

Não. Há mistério e um twist final como gosto de fazer. Gosto sempre de surpreender o público. Quem vir esse filme [não diz] que é do mesmo tipo que fez A Curva e as Killies.

Sabes que, durante algum tempo, e antes de fundarmos a Fábrica, pensei que tivesses parado de fazer filmes depois d’ A Curva. Porque não há, de facto, muita divulgação do cinema português, em Portugal. Muito menos quando é cinema de género. 

As pessoas que gostam de terror e de ficção científica continuam a fazer os seus filmes, mas o ICA (que é a única entidade que temos de apoio) não quer saber de cinema de género. Prefere cinema de autor, que na maioria das vezes não capta todo o público. Os filmes têm de ser feitos por camadas. É como um quadro. Quem tem uma licenciatura em arte, vai gostar de uma coisa; quem tem a 4.ª classe, vai gostar de outra coisa. O que é importante é que ambas gostem do quadro. Em Espanha, a nível de cinema, dão 20 a zero ao que fazemos aqui. E não têm problema nenhum em fazer comédias, comédias negras, terror. Há uma palavra que divide bastante os artistas, e que eu acho que é uma estupidez [essa divisão]. É quase uma palavra proibida para determinados círculos e é muito mal entendida, que é «entretenimento». Por vezes, [pensam nisso como] ir para a feira mandar dardos, ou ter coisas com cores garridas e má música, mas onde as pessoas bebem e dançam. Mas não. O entretenimento é apenas aquilo que te faz estar sentado durante uma hora e meia, ou duas, ou três, a prestar atenção a algo, porque te está a entreter. Se isso não acontecer, morre, a mensagem não chega ao recetor. Temos [em Portugal] pessoas cheias de talento, mas que depois têm de se ir embora, porque aqui não têm hipótese. Entre 2004 e 2007, o cinema em Portugal podia ter levantado voo. Primeiro, terminou a época de filmar em película, e o digital trouxe o cinema às mãos do povo. A criatividade deixou de ter limites.

Sim, tens menos um obstáculo. Claro que tens de ter conhecimento técnico, saber o que estás a fazer, mas abriu-se mais caminho.

Foi aí que decidi deixar a minha vida estável e voltar a perseguir o sonho [do cinema]. Vi que o digital estava a chegar, senti que, em termos de edição, houve um salto evolucional, e nessa altura surgiram algumas pessoas. Foi mais ou menos nessa época que apareceram o Coisa Ruim, do Frederico Serra e do Tiago Guedes, o I’ll See You in my Dreams, do Filipe Melo, a primeira curta-metragem de zombies em Portugal. [O cinema] cheirava a novo, sabes? Na altura, sentia-se que era agora ou nunca, que íamos tirar Portugal do mapa zero do cinema, que íamos fazer entretenimento, fazer coisas o mais insanas possível. E tinha tudo para andar. Aliás, as coisas estavam a andar. Fui abordado pelo Tino Navarro e fiz o RPG. O ICA lançou um subsídio que atribuía às produtoras um valor, e elas faziam o filme que quisessem! Era a loucura! [risos] Nós estivemos quase lá. Tínhamos novos festivais a surgir, artistas a trabalhar, e o que é que acontece? Chegam os malfadados anos de 2008 a 2010, uma crise financeira [que se alastrou a tudo] e da qual ainda estamos a sentir os efeitos. Se [voltarem a] atribuir dinheiro às produtoras [nesses moldes], elas terão liberdade criativa para criarem os conteúdos que quiserem e vão ser sucessos.

Além dos apoios, acho que também falha a comunicação para chegares ao público. Sentes isso?

Sobre o presente, primeiro é difícil convencer as pessoas a ir ao cinema. Não é preciso ser cinema português. O cinema já não é como nós o conhecíamos. As plataformas de streaming vieram dar a machadada final no cinema de sala, que já estava moribundo. Quando penso em fazer um filme hoje em dia, a minha preocupação não é que seja em sala. É que seja mostrado num sítio onde as pessoas o vejam. A nível de criação, de novas histórias, de novas dinâmicas criativas, estamos em alta. Graças aos deuses pelas séries de televisão que, hoje em dia, se fazem. Houve uma migração da maior parte dos realizadores, atores e técnicos para as séries. Há 20 anos, um realizador de cinema fazer uma série para televisão era mal-visto, era crucificado. Hoje, quando queres fazer um filme, tens de estar a pensar em «como é que eu vou vender isto à Netflix». O espaço do cinema mudou completamente, o comércio do cinema mudou completamente; no entretenimento, ainda não se sabe muito bem quais são as balizas. Nos primeiros anos do século XXI, perdeu-se uma oportunidade. Podia-se ter feito coisas bastante interessantes. As pessoas têm de perceber que a qualidade pode ser entretenimento. Como é que conseguimos levar as pessoas ao cinema? Se tiveres uma boa história, com entretenimento, com boas representações e com uma realização que não estrague, as pessoas querem ver esse filme.

Vês as coisas a mudar nos próximos tempos?

É preciso dinheiro para fazer cinema. Ponto. Não acredito, neste momento, que tenhamos grandes surpresas no cinema com entretenimento, seja de terror ou de outro género qualquer, nos próximos tempos. O meu desejo fervoroso é que haja um realizador português que consiga mostrar ao mundo [uma produção tipo] Casa de Papel, um fenómeno global. Basta um que consiga mostrar que os portugueses têm capacidade de entreter, quem quer que seja em qualquer lugar, e ganhar muito dinheiro com isso. Fica numa posição extraordinária para, a partir daí, com o dinheiro que ganha, começar a investir em produções para nos libertarmos dos agrilhoamentos dos subsídios. Sempre achei que o dinheiro muda tudo, se conseguisses ter um projeto que arrecadasse dinheiro por esse mundo fora e criassem as condições para começares uma produtora ou estúdios que investissem em cinema com entretenimento. As pessoas chamam-lhe cinema comercial, e eu acho isso um disparate. Um filme não tem de fazer dinheiro? Não tem de vender? Se um filme não é comercial, então não queres que as pessoas o vejam, guardas para ti. Sempre me fez muita confusão estas querelas entre cinema de autor, cinema comercial, cinema de entretenimento. Para mim, só há duas categorias: bom cinema ou cinema de merda. [risos] O resto é conversa.

Temos imenso medo de arte que venda, que seja um sucesso comercial. Eu ainda tenho esperança de que as coisas mudem.

Eu adoro fazer cinema. Não fazer cinema dói-me. Sou um trabalhador, acima de tudo. Há pessoas que são iluminadas, que, a nível criativo, têm problemas em selecionar [todas as ideias]. Há outros, como eu, que têm criatividade, mas que não são geniais, então têm de trabalhar o dobro para atingir certos patamares. Estou há dois anos e meio a escrever uma longa-metragem, estive quatro anos para decidir o que é que queria escrever. Espero terminar de escrever até ao final do ano. Não desisti [de fazer cinema]. Ainda acredito, mas já não quero mudar o mundo. Quero safar-me a mim, para poder ter oportunidade de me pagarem dinheiro para contar histórias.

E é um objetivo perfeitamente válido. E consideras voltar a fazer terror algum dia?

Se me arranjarem uma casa espetacular que dê para eu assombrar, uns silos ou umas caves, um sítio qualquer que dê para popular de cenas estranhas, se as condições necessárias surgirem, gostava imenso de voltar a fazer um filme de terror. Aliás, não só voltar a fazer um filme de terror, mas tentar fazer um filme que conte. Se as condições se voltarem a reunir, teria muita vontade de tentar descobrir aquilo que podia pensar num novo caminho para o terror. Gostava de fazer uma longa-metragem de terror que metesse as pessoas a sair da sala a correr.