Entrevista ao realizador José Pedro Lopes
Participa na antologia Histórias Estranhas II com o segmento Insonho.
«[…] quando é uma longa, tens muitas dinâmicas que não estão ligadas a júris. Ou seja, consegues distribuição em certos canais, certas plataformas. Não tem a ver com o filme ser considerado bom ou mau, é só se é considerado apelativo ou interessante. E acho que isso acaba por ser mais democrático. O espectador é que devia poder escolher o que quer ver e o que gosta.»
Mais conhecido pela longa-metragem A Floresta das Almas Perdidas, José Pedro Lopes também tem no currículo várias curtas que integraram antologias de terror internacionais. A mais recente, Insonho, faz parte de Histórias Estranhas II, um projeto do realizador brasileiro Ricardo Ghiorzi.
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Antes de mais, obrigada por esta entrevista à Fábrica do Terror. Neste momento, o teu filme mais conhecido será A Floresta das Almas Perdidas, que tem feito um percurso pelas plataformas de streaming, não morreu nos festivais. Foi a tua primeira longa-metragem?
Sim, A Floresta das Almas Perdidas foi um pouco o culminar de muitos anos de curtas-metragens com uma equipa que gostava de fazer terror. Então, decidimos retomar o esforço que fazíamos em tantas curtas para fazer uma longa-metragem. Ela tem, pelo menos para mim, também uma espécie de formato da antologia de curtas, porque foi feita como se fossem três curtas. São as mesmas personagens, mas foi filmada ao longo de quase dois anos. Precisamente por ter sido feita assim, apesar dos eventos daquele filme serem todos passados no mesmo dia, eu vejo aquilo em termos práticos, como uma curta longa, não uma longa longa, se é que faz sentido. Em relação à vida que o filme teve, acho claro que é uma vantagem totalmente diferente [de] quando fazes uma curta para os festivais, [que] têm um circuito mais difícil, mais limitado e complexo. Quando fazes uma curta, se ela é considerada boa, entra em muitos festivais, ganha prémios e, depois de uns festivais, vai para os outros. Quando é uma longa, tens muitas dinâmicas que não estão ligadas a júris. Ou seja, consegues distribuição em certos canais, certas plataformas. Não tem a ver com o filme ser considerado bom ou mau, é só se é considerado apelativo ou interessante. E acho que isso acaba por ser mais democrático. O espectador é que devia poder escolher o que quer ver e o que gosta. Num circuito de festivais, acabamos por estar muito condicionados a esses critérios de júris.
O filme ainda está na HBO?
Agora, em Portugal, está só na FilmTwist, no videoclube da NOS e na Filmin.
Mas, quando esteve na HBO, também estava disponível no estrangeiro?
Estava só em Portugal. Lá fora, a plataforma que teve mais [projeção internacional] foi a Amazon Prime. Na altura, não conhecia bem [o processo], mas, quando um filme é pequeno e distribuído pelo próprio realizador, que foi o caso, acabei por estar a vendê-lo mercado a mercado. O distribuidor dele em Espanha não é o mesmo que em Portugal, não é o mesmo noutros países. E acho que grandes lançamentos acabam por ter, de alguma maneira, uma coordenação internacional que eu não conseguia oferecer. Quando um filme está na Amazon e na HBO, no mundo todo ao mesmo tempo, é porque alguém [o] vende a esse nível global. Tem de ser um grande distribuidor. O filme, agora, está disponível em vários sítios em Espanha, muito mais do que em Portugal, porque o distribuidor espanhol ainda tem interesse no filme e o dinamiza. Em Portugal, já viveu o que tinha a viver, eu acho, em termos de interesse. Agora, existe como uma peça de culto, vamos chamar-lhe assim.
Ponderas fazer alguma longa em breve ou essa bastou-te, dentro deste género?
A nível pessoal, trabalho ligado à área do audiovisual, mas mais na área da produção e criação de conteúdos comerciais ou publicitários. Portanto, quando chega ao tema da ficção e eu a trabalhar como autor, estou totalmente independente. Já houve uma parte grande da minha vida a que me dediquei a fazer candidaturas, mas não tenho mais vontade de o fazer, porque nunca tive sucesso no processo. A experiência de A Floresta [das Almas Perdidas] abriu muitos horizontes, muitas perspetivas, por um lado, mas a verdade é que a vida de adulto cria muitas limitações de tempo. Como sou pai e também tenho de trabalhar, o meu tempo para a criatividade fica condicionado. Também [me] tenho dedicado à música, que é outra área que me interessa [e que] ocupa algum do meu tempo disponível. Mais recentemente, fiz uma série de curtas no âmbito da pandemia, algumas passaram na SIC Radical e no Canal Q, que foram feitas para o Dread Central e para o Bloody Disgusting, plataformas de terror que, na altura, estavam a fazer conteúdos. E agora, este Histórias Estranhas II, que achei um formato interessante. Ou seja, se para A Floresta foi como se fossem várias curtas, aqui, vários a fazerem uma curta que depois dá uma longa até acaba por ser um facilitador. Porque eu acho que, quanto mais longa uma rodagem, mas difícil é, especialmente quando estás a fazer as coisas com pouco dinheiro, que é o meu caso.
O financiamento ou a dificuldade em consegui-lo acaba por ser uma barreira. Sobretudo quando falamos em cinema de género.
Já houve coisas de género apoiadas e financiadas, e algumas delas bastante interessantes. Mas o que acho que acaba por ser o problema principal é a duração que o projeto acaba por ter. Por exemplo, estive envolvido, depois d’A Floresta, numa série de televisão que recebeu 50% de apoio no âmbito da consulta de conteúdos da RTP, que financia metade, e tens de conseguir os outros 50%. [Fizemos a candidatura para financiamento], perdemos um ano, perdemos no segundo ano e, no fim do segundo ano, a RTP, porque isso fazia parte do contrato, retirou o apoio e a série morreu. E para mim foi: «OK, estivemos dois anos a fazer a candidatura para, no fim, ser zero, como se nunca tivesse existido». Sou sincero, na segunda candidatura, já estava do género: «vamos melhorar algumas coisas, mas já não tenho muita confiança». Também já não gosto assim tanto disto, porque tens um entusiasmo para lutar e fazer um projeto durante dois, três anos, e depois eles nem sequer acontecem. Perdes imenso tempo com a parte burocrática, ou seja, estás a perder mais tempo com papéis, [que é] a parte [que] não interessa no filme, do que propriamente a fazer as coisas acontecerem.
Comparo muito Portugal e Espanha. Espanha está constantemente a produzir cinema de género, estão muito mais à frente em termos de produção. Não sei o que é que poderíamos aprender com eles.
Acho que isso tem a ver com o cinema português todo no geral. Há uma difícil ligação ao público, mas acho que nem se prende muito com o cinema português. Por exemplo, durante muitos anos, trabalhei com uma distribuidora em Portugal, que distribui cinema de autor e, ao longo dos anos, fomo-nos apercebendo de que, na realidade, não fazia muita diferença. O público que existia para cinema de autor era X. Esse X nunca ultrapassou. Podíamos fazer os truques todos que visses lá fora, isso não ia chamar gente que nunca iria lá. Por exemplo, como espectador, sou do Porto, e aqui, se excluirmos o cinema Trindade, na baixa, e o Batalha, que é uma espécie de cineclube, os outros cinemas são todos de shopping. E a verdade é que cada vez mais a programação dos cinemas de shopping está canalizada para a autodistribuição, ou seja, eles são todos propriedade dos dois ou três distribuidores que dominam o mercado, que [passam] lá aqueles filmes e cada vez são menos diversificados. Isso não fez com que houvesse necessariamente mais público para o Trindade, [o público] é o mesmo. Efetivamente, o público deles não flutua muito. As pessoas que querem ir ao cinema sem ser no shopping vão ao cinema da baixa, onde querem ver filmes de qualidade. E vão ver o que lá está. Acho que isso também acontece em Lisboa. As pessoas vão ao Ideal e, às vezes, o filme não presta. Outras vezes, o filme é bom, mas isso até é interessante, porque cria um debate. Julgo que tem pouco a ver com a qualidade do filme e que isso transita de igual forma para o cinema português. Quando lancei A Floresta, uma das coisas que percebi foi que o público que teria era uma soma negativa para mim. Porque o meu filme era português, o meu público era o de cinema português. Podia fazer o que quisesse, que o público que não fosse público do cinema português não ia ver o meu filme. Para o público de terror, aquilo era um filme português. Certas pessoas dizem-me que eu sou o único realizador português que alguma vez viram, porque me conhecem pessoalmente. Efetivamente, há filmes portugueses que têm 1000-2000 espectadores. Óbvio que não diria que são tudo pessoas conhecidas, mas são aquele público que tem vontade de ver filmes portugueses, e esse é um público pequeno e que só queria sessões em coisas mais pontuais.
És associado, em termos de trabalho, só à Floresta das Almas Perdidas, mas não fizeste só esse filme de género. Participaste em várias antologias de terror internacionais, como o Dread Central, o ABC of Death.
Sim, vou fazendo. Nos últimos anos, por causa do projeto musical, tenho-me dedicado menos, mas vou fazendo. No caso do ABC of Death, foi uma experiência negativa. É uma antologia de terror americana, com um segmento para cada letra do alfabeto, e a letra M, no segundo filme, era aberta a um concurso internacional. Isto foi no início das popularidades das redes sociais. Fiz uma curta, M is for Macho, mas aquilo tinha um sistema de votação online que deu muitas confusões. Um amigo meu também fez uma curta, e ambas ficaram nos primeiros 20 [lugares], para depois serem vistas por um júri, mas depois houve uma pessoa que pôs em causa e disse que tinham sido bots a votar, e uma das nossas curtas [ficava de fora]. Acabámos por concluir que tinha sido uma péssima ideia. Não faz sentido continuar a ter esse sistema de votos e, em muitos circuitos, não se aplica essa lógica. Por exemplo, no âmbito da banda que tenho, uma banda de punk rock cantado em português, não somos particularmente grandes, mas não temos também muita preocupação com essa questão de dinâmicas de Internet. Vejo que há outras bandas que fazem publicações para ter mais seguidores, e nós não. Já fui a concertos deles, e o público é mais ou menos o mesmo, mas vejo que as pessoas são capazes de olhar para nós e verem só 600 ou 700 seguidores no Instagram, enquanto outros têm 3000, mas esses 3000 seguidores não se vão traduzir em estarem mais do que 30 pessoas num sítio de concertos em Aveiro. Vai ser igual. Portanto, que diferença é que faz? Essa dinâmica das métricas online continua a ser um factor de discriminação. Acho que vai tender a desaparecer, honestamente. Acho que as pessoas estão um bocadinho fartas e a perder o interesse.
O teu filme mais recente, Insonho, é um segmento do Histórias Estranhas II, uma produção luso-brasileira, uma produção conjunta?
Não gosto de colocar as coisas nesses termos. É óbvio que o Insonho foi produzido por mim, mas o projeto em si é de um realizador do Brasil chamado Ricardo Ghiorzi, que é do Rio Grande do Sul. Ele fez 13 Histórias Estranhas, que era uma combinação de várias curtas que ele fez em 2007. Depois, deu lugar ao Histórias Estranhas I, que são 5 dessas curtas num formato de longa-metragem, e ele tinha muita vontade de voltar a fazer uma segunda antologia, onde teria outros critérios. Isto porque, na primeira vez que o fez, qualquer um que quisesse participar podia participar, e ele não opinava nada. E então aquilo tem durações totalmente díspares, qualidade totalmente aleatória e, claro, depois o resultado final não é interessante. Eu conheci-o num festival de cinema e disse-lhe que gostava de participar [num projeto futuro]. Começámos a fazer a antologia antes da pandemia e só conseguimos acabar depois.
Não podemos dar spoilers deste Insonho, mas o tema comum da antologia é Demónios e Possessões. Como é que surge a história do filme?
Queria fazer uma história que pegasse num monstro português tradicional. O meu filho mais velho tem um livro sobre monstros tradicionais portugueses, e estive a escolher de entre os que conhecia de lá. A ideia principal do filme é que ele, durante o sono, induz uma espécie de coma que envolve uma fantasia circular. Achei que a partir daí conseguiria desenvolver algumas ideias engraçadas que tinha, nomeadamente porque tinha recentemente visto um filme que se chama Jacob’s Ladder, e esse filme tem um final que acho muito interessante. A personagem do Tim Robbins está a viver uma realidade onde aparecem muitos monstros e muitos demónios, e ele acha que está a ser perseguido, que tem alguma coisa a ver com a guerra do Vietname, onde tinha estado. No fim, descobrimos que ele ainda está lá e em coma no hospital. Queria pegar nessa ideia e desconstruir um bocadinho por cima, e achei que esse demónio permitia fazer isso. Uma antologia de que gosto muito, mais recente, é o México Bárbaro, onde também vão buscar coisas tradicionais. Por exemplo, se houvesse um Histórias Estranhas III, eu queria que fosse diferente. Eu acho que eles são os únicos que conseguem fintar isso. Tens muito síndrome do para-arranca. Ou seja, tens construção, tens construção, tens o clímax, tens outra vez construção. No caso do Histórias Estranhas, não conseguimos evitá-lo porque os filmes também foram feitos de uma forma autónoma, cada um faz a construção da sua história, a sua conclusão, e o espectador está sempre ali a voltar para o início.
Onde é que conseguimos ver o filme nos próximos tempos?
Para já, vai passar em fevereiro no Fantasporto. E ainda está a fazer o circuito de festivais. Acho que, em Portugal, vai ser só no Fantasporto, sendo que eles têm ideia de o filme ser depois distribuído no Brasil, no verão. Acho que, depois, vamos ver se conseguimos colocá-lo em alguma plataforma, para ser visto.
Sei que agora estás mais dedicado à música, com muita pena nossa. Gostávamos de ver mais filmes teus, portanto, não percas a esperança.
OK, vamos fazer por isso.
Nunca se sabe o que pode acontecer nos próximos tempos, mas em que projetos é que estás a trabalhar agora?
Agora, estou a fazer produção, a colaborar numa série de televisão. Vai ser para a RTP Play e é em torno de um álbum de David Bruno, que é um músico aqui do Porto. A seguir a isso, vamos ver se consigo ganhar motivação criativa para pensar no próximo projeto. Já falámos sobre a hipótese de fazer Histórias Estranhas III num formato diferente. Agora, para fazer um projeto totalmente sozinho, como foi A Floresta das Almas Perdidas ou as curtas, tenho de conseguir arranjar a motivação certa para o fazer. Mas tenho muita gente que gostava de trabalhar comigo para fazer mais e melhor. Por isso, é uma questão de ganhar essa motivação.
Nota editorial:
A versão em áudio pode não corresponder na totalidade ao texto que aqui publicamos. A versão em texto da entrevista foi editada para, entre outros aspetos, limar traços de oralidade e condensar algumas respostas por uma questão de coerência.
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Sandra Henriques
Sandra Henriques estreou-se na ficção especulativa em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada». Desde aí, publicou contos em várias antologias de terror nacionais e internacionais e contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.