O Julgamento das Bruxas de Lisboa de 1559

Um episódio curioso num país sem uma tradição de «caça às bruxas»

Contrariamente ao que se poderia esperar, esta perseguição não foi ordem da Inquisição.

Avatar photo
Patrícia Sá

Há uns tempos, refleti sobre a figura da Bruxsa, e, em Portugal, parece haver o consenso de que a bruxa é uma criatura maléfica, geralmente em conluio com o Diabo. De acordo com William E. Burns, as crenças populares em relação à bruxa pintam-na como um ser com poderes inatos, cujos pactos com o Diabo e os sabats funcionam como meios de amplificar a sua magia. Opõe-se à fada, uma entidade bondosa e salvífica na nossa tradição nacional (sobre o assunto, sugiro ler o capítulo II de Contribuições para Uma Mitologia Popular Portuguesa e Outros Escritos Etnográficos, de Pedroso Consiglieri).

Apesar das diferenças face a outras tradições europeias, o medo da bruxa não era menos potente durante o período de atividade da Inquisição em Portugal. Brian P. Levack refere que os clérigos nacionais eram obcecados pelos pactos demoníacos de bruxas e feiticeiras. Mais do que o mal que poderiam arquitetar, preocupavam-se maioritariamente com as ligações destas ao Diabo. De facto, adianta Levack, as «bruxas» condenadas à morte pelo Santo Ofício em Portugal não eram acusadas de danos físicos ou materiais fruto de artes mágicas, mas antes de renúncia ao cristianismo.


Porém, após uma breve investigação, percebi que Portugal não é conhecido pelas suas acesas caças às bruxas, contrariamente a outros países europeus.


De facto, Levack nota três peculiaridades na forma como as autoridades religiosas portuguesas encaravam as acusações de bruxaria: em primeiro lugar, Portugal carece de registos de julgamentos criminais dos seus tribunais seculares, pelo que, fora as condenações em Lisboa entre 1559 e 1560, não se sabe quase nada sobre o envolvimento secular nesta matéria; em segundo lugar, o interesse da Inquisição na bruxaria só atingiu o seu cume no século XVIII; por fim, as execuções em praça pública por crimes de bruxaria são ocorrências raras, sendo que a maioria dos acusados morria na prisão. Aliás, de acordo com Burns, para os acusados de bruxaria e feitiçaria, a Inquisição portuguesa reservava punições humilhantes, sendo frequentes os açoitamentos e penitências.

No entanto, existe um caso de perseguição secular a bruxas documentado: o julgamento das bruxas de Lisboa de 1559. Um documento — cuja digitalização pode ser consultada no site da Biblioteca Nacional de Portugal — dá conta da única execução do século XVI em Portugal por crimes de bruxaria, quando cinco bruxas foram levadas de Aveiro para Lisboa para serem queimadas em autos-da-fé no Largo do Rossio. No seguimento dessa perseguição, a rainha regente D. Catarina promoveu uma «devassa que implicou outras 28 pessoas, sem que tivesse havido, aparentemente, qualquer intervenção direta do tribunal inquisitorial», segundo Daniel Norte Giebels. Apesar disso, os inquisidores interrogaram duas suspeitas sobre «se tinham falado com demónios ou se conheciam outras feiticeiras» (idem). De acordo com Leticia Mariano de Rezende Silva, nenhum nome das «bruxas» é indicado no documento acima referido, mas relatam-se as confissões de duas das mulheres condenadas.


Este episódio interessou-me por ter tido origem secular e por ter sido uma ocorrência aparentemente única na nossa história.


Além disso, é uma ilustração apta de como a bruxa operou ao longo dos séculos enquanto bode expiatório, criado e perseguido pelas autoridades eclesiásticas e seculares. Jeffrey Richards resume bem o papel das bruxas nesse processo, funcionando como alvo imaginário do medo e da raiva das populações: «As bruxas satânicas […] eram […] os bodes expiatórios perfeitos, uma minoria inventada, uma imagem compósita do mal, pronta para ser usada e aplicada a qualquer pessoa que discordasse dos dogmas da Igreja e que, pelo uso da tortura e do terror, se tornava realidade. A propaganda contínua sobre o perigo […] penetrou na consciência popular até gerar frutos pavorosos nas caças às bruxas dos séculos XVI e XVII, quando a grande massa das comunidades aceitava e incentivava a caça aos servos de Satã».