Entrevista ao realizador Tomás Ferreira

In a House, at Night é uma das duas curtas-metragens no circuito dos festivais internacionais de cinema independente

«Vi uma mãe e uma criança a verem televisão, iluminadas por aquela luz [do ecrã] e pensei “que imagem tão frágil dentro de um mundo tão pesado”, […] são pessoas a tentar ser uma família num ambiente alienígena, hostil, uma prisão dos anseios a esforçar-se por ser lar.»

Sandra Henriques

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Tomás Ferreira está de regresso a Portugal, depois de um mestrado em realização na Universidade de South Wales. Na bagagem, trouxe duas curtas-metragens, que está, por agora, a submeter a vários festivais, e planos para ingressar na indústria.

Enquanto escreve a sua primeira longa-metragem — sobre a qual não nos quis, ainda, revelar muito, apenas que é um filme português e que gostaria de filmá-lo em Portugal —, está a aprofundar a sua experiência como montador, enquanto coapresenta o podcast com o título sugestivo Royale Without Cheese, que criou com Miguel Aido e Leonardo Miranda, colegas da Escola Superior de Teatro e Cinema.

 

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Depois da Licenciatura na ESTC (Escola Superior de Teatro e Cinema), decides fazer um mestrado no País de Gales. Como e quando é que acontece esse «salto»?

Tinha terminado a licenciatura em cinema (argumento e montagem) em 2020. São as duas áreas [Argumento e Montagem] em que me fui formando ao longo desses três anos, sobretudo em argumento (especialização), mas tive sempre esta grande aspiração pela realização. Foi com este intuito que comecei a procurar por opções de mestrado e acabei por encontrá-lo no Reino Unido. [Lá é] um sistema diferente, mais virado para o produtor como a figura-chave, e não tanto o realizador como autor. Acabou por ser também interessante ver essa perspetiva de trabalho e virar-me para outro prisma de como trabalhar em cinema, apesar de sentir-me mais inclinado para o cinema de autor ou artístico. Antes de começar o mestrado, já tinha duas ideias-chave para as curtas que teria de fazer, e o meu projeto final foi o In a House, at Night.

 

Como é que te surge a ideia para o filme?

Há uma casa perto de onde vivo, aqui em Portugal, que é um abrigo para vítimas de abuso doméstico. À noite, estava a caminhar, como fazia muito durante a pandemia (isto aconteceu em 2020), e deparo-me com a imagem desta casa, que de fora parece uma coisa inocente, branca e cor-de-rosa, mas ao mesmo tempo conserva em si algo de medonho, horrífico. Tinha um muro alto, esta grande muralha à sua volta, e grades nas janelas. De súbito, vi uma mãe e uma criança a verem televisão, iluminadas por aquela luz [do ecrã] e pensei «que imagem tão frágil dentro de um mundo tão pesado», porque no fundo são pessoas a tentar ser uma família num ambiente alienígena, hostil, uma prisão dos anseios, a esforçar-se por ser lar. Achei muito interessante o potencial que poderia haver nessa situação para uma história que primeiramente é um drama, contido, sob o filtro de um filme de terror que é a atmosfera que tentei alcançar. E foi uma coisa que se foi formando. Fui fazendo pesquisa para o filme, assisti a diversas conferências, li documentos sobre regras de vivência em abrigos do género, vi documentários, e o que se vai pesquisando do real acaba por informar a ficção. [O filme é a] história sobre esta mãe e a filha que tentam viver num abrigo para vítimas de violência doméstica. Começa com o desacato entre as duas, sendo que a filha quer regressar à vida antiga, ao pai que já não lembra como o monstro, levando à separação das duas. A filha é a nossa protagonista principal, que seguimos e [através dela] vamos descobrir o que é este espaço anónimo, no princípio do filme. E é pela vivência das outras mães, a presença dos pesadelos delas, de outras ocorrências dentro da casa, que reconhecemos o lugar como estranho e o trauma partilhado por aqueles que a habitam. Ela, por isso, recupera esse sentimento de preocupação pela mãe, de querer protegê-la, e a ela regressa. [Isso enquanto] seguimos o que é a mãe lidar com esse sentido de responsabilidade pela filha, o não saber como lhe pode conceder esse regresso à normalidade, a uma noção de família passada, quando esta é insegura.

 

Na essência, e isso pelo trailer percebe-se, é efetivamente um drama familiar. Tu usas este filtro do terror para traduzir esse trauma que é universal. Ao longo da tua pesquisa, tiveste a preocupação de transmitir esse trauma da melhor forma possível, sem caricaturá-lo, de certa forma, porque para além de realizares o filme, também o escreveste.

Sim, no meu trabalho como realizador (que é a minha aspiração, desenvolver-me como realizador e argumentista, enquanto trabalho como montador), sinto que sempre tive um vínculo bastante forte à escrita. Penso em mim primeiramente como escritor, como argumentista, e sinto que isso tem ramificações para tudo o resto. No fundo, estas três áreas (realização, argumento, montagem) não são muito diferentes, no pensamento e nas questões com que se ocupam; apenas as ferramentas diferem. Focam-se em encontrar contrastes na nossa realidade, na condição humana, e auscultar o seu potencial dramático. Nesse sentido, sempre me atraíram. Portanto, como realizador, sinto a minha relação com um projeto como muito mais íntima, caso o trabalho da ideia parta de mim desde a escrita.

 

Como é que foi criares estas personagens e esta história, fazendo esses três papéis: de argumentista, de realizador e de montador? Por um lado, não tens muitas pessoas com quem discutir. Por outro, a tua entrega é total e calculo que tenha um outro preço emocional, para o bem e para o mal. 

Lembro-me de instantes, durante a pesquisa, quando lia certos comentários ou lia casos, em que ficava chocado com o que via. Há primeiramente uma conversa a sós comigo mesmo, ao longo desta pesquisa, e depois a partida para a história. É como se se multiplicassem os Tomás na cabeça. Estamos a discutir uns com os outros sobre o que há de acontecer e essa conversa acho que é natural e faz parte do processo. Para mim, ajuda muito criar pessoas para além do Tomás, no sentido em que eu fiz literalmente entrevistas para as personagens, e elas falam comigo à medida que vou escrevendo as respostas a uma série de perguntas. Digamos que é um primeiro impulso da imaginação e da minha experiência que me ajuda a desenvolver o mundo de relações da história até ter de pôr as cenas em papel, mas não deixo de ter um pequeno grupo de amigos e colegas de confiança dentro da área com quem posso partilhar o primeiro rascunho e isso ajuda imenso. Senti que no início, quando comecei a escrever o argumento, certos elementos mudaram bastante para melhor porque tive esse contacto com outras pessoas, que me puderam dizer se alguma coisa estava a funcionar ou não. E ajuda tremendamente porque estamos a escrever e é difícil abstrairmo-nos daquilo que nós próprios estamos a visionar. Estamos a lidar, enquanto argumentistas e escritores, com todas estas ideias e camadas na cabeça, a tentar implementar essas várias camadas em subtexto e tensão dramática, e às vezes não vemos que as coisas mais simples não estão lá patentes.

 

E lutares contra as tuas próprias ideias preconcebidas até que a história faça sentido.

Exato. Porque as pessoas estão a ler o que está no papel, não estão na tua cabeça, não têm acesso a todas essas camadas.

 

Esta curta estreou em novembro de 2022, já passou pelo Soho London Independent Film Festival e o London Lift-Off Film Festival, e tem estreia marcada para o Boden International Film Festival, na Suécia, em fevereiro de 2023.

Sim, está em submissão para mais festivais, incluindo portugueses. [Mas] em termos de distribuição, [é mais complicado para] estes filmes de menor orçamento, quando não têm fôlego para publicidade (que é uma grande arma para atrair a atenção) e são curtas-metragens. Já por si, a preferência do mercado é sempre para as longas, porque uma curta não é algo com o qual os realizadores costumem lucrar na distribuição e exibição. Mas é, em todo o caso, uma ferramenta importante como um calling card, aquilo que não só mostra do que somos capazes e que precisa de um local para ser visto, quer também um modo focado e contido de nos descobrirmos enquanto cineastas, a nossa linguagem, questões de interesse, o exercício da técnica.

Achas que a duração desta curta (22 minutos) pode influenciar ou não na seleção  para festivais?

Penso que, se o filme vale a pena, se confiamos na sua qualidade enquanto autores, então é perfeitamente uma boa aposta para exibir, se isso significa dar a conhecer uma história que é premente, um filme que experimenta coisas novas, dentro do género ou dos géneros que cruza. Entre escolher 15 ou 22 minutos ou meia hora, se o realizador considera que tem de ter 22 minutos, é porque é assim que a história tem de ser contada, e foi o que senti no meu caso. Fiz outras curtas, de dez minutos, e consegui economizar, mas no caso de In a House, At Night foi diferente, até porque implicava seguir duas pessoas em paralelo, duas protagonistas, sendo que uma é a mais principal, o veículo da narrativa. Sinto-me melhor sabendo que o filme tem 22 minutos e que fiz justiça à atmosfera e intenção do filme.

 

E acho que faz sentido ires à luta com aquilo que tens e que faz sentido para ti, claro. Mas sentes que comprometeste alguma coisa na história?

[risos] É uma excelente pergunta porque está tão carregada de momentos do que eu queria fazer e não consegui fazer. Contudo, no fundo, estou mesmo muito satisfeito com o filme, sinto-me muito realizado com ele, acho que, em grande parte, é o filme que queria fazer desde o início, pois a chave é ter-me mantido fiel às minhas intenções. Claro que, como cineastas a debatermo-nos com os imprevistos e dificuldades do fazer cinema, ao mesmo tempo, se for ao cerne da questão, também não é exatamente o filme que tinha na cabeça em certas nuances iniciais. Não é. Acho que isso poucas vezes acontece ou é difícil de acontecer porque há sempre, no mundo do cinema, obstáculos que temos de enfrentar, e parte do realizador ou do produtor ser flexível para se adaptar aos problemas do momento. E a chave, mais uma vez, é esta flexibilidade simultânea com uma visão clara e fiel às intenções originais que nos movem a inspiração. Por exemplo, se o espaço não te permite ter a luz que queres, há que repensar a construção do plano, mas não o seu poder na cena. Às vezes, havia complicações geográficas na forma como afetava a luz. Queria um filme muito mais chiaroscuro, com maiores jogos de luz e sombra, mas não foi inteiramente possível. Ainda assim, acho que consegui manter a essência do que queria, a visão original que está lá, efetivamente.

 

Já realizaste duas curtas antes desta, Fate e Away in Silence.

Sim, de ficção. E uma de documentário, o Idas e Vindas, que fiz o ano passado [2022] cá em Portugal. Está também em submissão para festivais, de momento.

 

O Away in Silence também é um drama familiar, com esta carga opressiva?

[risos] Eu sou um bocado horrível com as minhas personagens. [risos] Faço-as passar por um mau bocado.

 

Isso é capaz de ser a tua assinatura! [risos]

[risos] É capaz, não sei! [risos] O Away in Silence também foi uma ideia que tive para outro projeto durante o mestrado. No fundo, é um drama familiar que se poderá dizer que passa sob um filtro de um filme de suspense ou thriller; penso sempre nestes filmes que fiz primeiro como um drama acima de tudo. É um filme minimalista, um trabalho muito focado, onde tento dizer o máximo possível visualmente e menos por diálogo, tal como em In a House, At Night. No caso deste filme, é sobre uma senhora de idade que se está a deparar com a entrada numa idade mais avançada, pelo facto de ter de usar muletas pela primeira vez, devido a problemas crescentes de mobilidade. E então, vê-se nesta situação de ter de cuidar do neto, porque a filha tem de trabalhar e precisa de alguém. Nota-se que entre ela e a filha há esta tensão, porque ela tem de deixar o filho e suspeita da reticência da mãe em usar as muletas por orgulho. Mas, acreditando que a mãe ainda é capaz, deixa a criança com ela. No resto do dia, o desastre acontece porque a avó acaba por derrubar a única comida do miúdo, que a mãe trouxe, e a opção que lhe resta para o salvar da fome é ir ao quarto no primeiro piso buscar as muletas e ir à rua comprar comida. A questão «fará ou não o fará?» é uma história puramente física, uma dança de sofrimento para ultrapassar as escadas e chegar ao quarto onde estão as muletas.

 

No trailer, o choro desesperado da criança com fome é perturbador. Isso é mais terror psicológico que drama familiar, quase.

Quando estou a escrever, penso que vou escrevê-los como um drama, porque é isso que são mesmo. E em última análise, neste filme, termino com um bittersweet end em que o orgulho acaba por vencer. Porque queria ver também a posição de uma senhora que é avó a tomar uma atitude nada associada à figura tradicional da avó, querida e benevolente, que protege o neto. Por um lado, ela gosta muito dele e quer protegê-lo numa primeira instância. Tenta, mas, chegada ao quarto, depois de todo o esforço, a ideia de a vergonha lhe regressar e nem sequer conseguir sair de casa, até por medo de maior dor, atraiu-me. E claro, em termos formais, é tão mais interessante quando destes dramas surgem estas noções de que parece um filme de terror ou um thriller como uma fusão de ambiências.

 

Sentes que a indústria do cinema em Portugal (ainda) é só para alguns? Ou consegues ver-te a fazer cinema em Portugal?

Agora, estou a escrever a minha primeira longa, que também é um cruzamento de géneros, apesar de, para mim, se tratar primeiramente de um drama. Para mim, é uma longa que quero filmar em Portugal, sim, mas no geral, em termos de trabalho, apesar de querer ser realizador, é um percurso que vejo paralelo ao que quero desenvolver como o meu trabalho consistente na indústria, como montador. Estou aberto a ir para qualquer país, ficar cá, regressar ao Reino Unido ou mesmo ir para outros lugares e explorar novas colaborações e projetos como montador e realizador. E é com esta perspetiva que começo o ano de 2023.