Realizadores de «Duyster», Jordi Ostir e Thomas Vanbrabant, em entrevista à Fábrica do Terror
«Temos duas coisas em comum: a paixão pelos filmes de terror e a falta de paciência»
De Cláudio André Redondo
Depois de passarem por vários festivais, os realizadores belgas Jordi Ostir e Thomas Vanbrabant apresentaram Duyster no Fantasporto. Falámos com ambos sobre o seu percurso profissional, a sua paixão antiga pelo terror e o desafio de fazer filmes do género na Bélgica.
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Como foi o vosso percurso até trabalharem juntos neste filme?
Jordi Ostir: O Thomas [Vanbrabant], que escreveu o guião, fazia um podcast sobre cinema chamado Zaal 4 e, em 2017, eu comecei um podcast sobre filmes de terror [chamado Kolkslag 12]. Foi assim que nos conhecemos. Éramos convidados habituais um do outro, até que o podcast do Thomas terminou. Um dia, ele enviou-me uma mensagem para nos encontrarmos e bebermos um copo em Antuérpia, onde ele vive, e nessa altura enviou-me um guião. Eu pensei que ele queria que eu o lesse para lhe dar feedback e foi o que eu fiz, com esperança que o Thomas um dia conseguisse fazer este filme. Só depois é que percebi que ele queria que eu trabalhasse no filme com ele. Lembro-me de dizer que tinha de pensar muito bem sobre o assunto, mas, depois de duas cervejas, já estava pronto para fazer o filme com ele! [risos]
Foi um processo de decisão rápido, então!
Jordi: [risos] Sim, estava convencido.
Thomas Vanbrabant: Nós temos duas coisas em comum: a paixão pelos filmes de terror e a falta de paciência. Na Bélgica, quando queremos fazer um filme, a única forma de o conseguir é através de candidaturas às instituições governamentais e tem de ser com um produto muito comercial, que venda «bem». Mas é um processo muito demorado. Temos de nos candidatar aos fundos, depois temos de apresentar o projeto e entregar documentos, e isso demora anos. E nós não temos essa paciência. Também não seguimos o percurso linear de fazer uma curta-metragem primeiro e só depois a longa-metragem, o que era bastante ambicioso. A forma de o conseguirmos fazer foi falar com as pessoas que tinham a mesma ambição que nós, de fazer um filme de terror na Bélgica, que não é propriamente um país de filmes de terror.
Jordi: Existem alguns, mas são muito alternativos, não são feitos para as massas. A Bélgica é conhecida pelos seus filmes independentes. Filmes de ficção científica ou de terror não são muito comuns.
Thomas: Há um ou outro de que gostamos, como o Daughters of Darkness, mas não são muito conhecidos na Bélgica.
Jordi: Decidimos que tínhamos de ir pelo caminho de fazer tudo sozinhos, contando com a disponibilidade e o apoio de outros fãs de terror. Foi muito gratificante perceber que as pessoas queriam trabalhar connosco porque queriam fazer um filme de terror, não era uma questão de dinheiro. E fizemos uma campanha de crowdfunding para angariar fundos.
Então este foi o primeiro filme que fizeram? Não tinham experiência?
Jordi: O Thomas já tinha feito duas curtas-metragens, filmes estudantis. Eu estudei na escola de cinema, mas desisti do curso no segundo ano. Desde essa altura que fazia vídeos musicais.
Thomas: Eu nunca estudei cinema, estudei História, e é daí que vem a história [do Duyster]. Mas nenhum de nós tinha propriamente conhecimentos de cinema.
Isso é espantoso. Então foi essa ligação à História que influenciou o guião para o filme?
Thomas: De certa forma, sim. Eu sempre tive muita curiosidade com a história europeia dos séculos XVI e XVII, por isso fiz muita pesquisa antes de começar a escrever o guião. Uma das coisas em que concordámos logo de início foi que queríamos que o filme fosse o mais autêntico possível. Tudo o que se passa no filme é baseado na Antuérpia daquele tempo. Algumas coisas são inventadas, mas são sempre baseadas em algo que aconteceu mesmo.
Jordi: A parte da tortura das mulheres é real. Quer dizer, não é real no filme! [risos] Mas as técnicas são reais, aquelas coisas aconteciam às mulheres naquela altura tal como as vemos no filme. Alguns dos elementos de terror foram influenciados por coisas que lemos na Internet e depois adaptámos à nossa maneira.
Thomas: Quando apresentávamos a ideia para o filme, as pessoas gostavam do facto de ser autêntico. Para quem conhece Antuérpia, há parques onde as crianças brincam hoje em dia, mas que antigamente eram locais de enforcamento, ou onde se espetavam cadáveres em estacas para mostrar às pessoas as consequências do mau comportamento. E não foi há mais de 300 anos.
Jordi: E outra coisa fixe é que Antuérpia é conhecida pela música underground. E um dos nossos protagonistas é músico e bastante conhecido pelos fãs desse género. Também filmámos algumas cenas numa casa abandonada onde essas bandas costumam tocar, e quem frequenta esse sítio gostou de vê-lo no filme.
De facto, tive essa sensação. Senti que reconhecia um pouco de Antuérpia no filme e eu nunca estive lá!
Jordi: Na verdade, o filme é um guia turístico de Antuérpia! [risos]
Parece mesmo! [risos] Mostram pequenas partes da História ao mesmo tempo que mostram a cidade.
Jordi: Queríamos que Antuérpia fosse uma das personagens.
E conseguiram, sim. E porque escolheram fazer este filme como found footage?
Thomas: Eu gosto do género found footage e também é mais fácil de fazer. Não temos de nos preocupar com a iluminação e conseguimos fazer um filme com menos equipamento e câmaras. Mas acabou por ter também os seus desafios. Não podemos cortar muitas vezes e por isso os takes são longos, de seis ou sete minutos, e, se fazes merda aos cinco minutos, tens de voltar ao início. É desafiante sobretudo no terror, quando trabalhas com sangue e efeitos práticos. Por um lado, tens de ensaiar muito; por outro lado, porque tens um orçamento apertado, não podes perder muito tempo com ensaios.
É complicado porque tens de fazer com que os atores pareçam que não estão habituados a estar em frente a uma câmara.
Jordi: Nós tivemos muita sorte, sobretudo com a nossa atriz principal, que nos deslumbrou na audição. Sabíamos de antemão que a protagonista tinha de ser muito boa, senão o filme seria um fiasco. E só tivemos um dia para fazer as audições, por isso tivemos mesmo muita sorte com ela. Sabíamos que ela seria capaz de lidar com tudo o que lhe pedíssemos.
Thomas: E eles [do elenco] nem eram grandes fãs de terror, por isso tínhamos de explicar tudo. Mas conheciam o Blair Witch Project. Toda a gente conhece o Blair Witch Project.
Jordi: Nem que seja só de ouvir falar!
Thomas: Sim, mas mesmo assim conseguiram. Acho que foi um grande desafio conciliar a personagem que está a filmar com o operador de câmara, toda aquela coreografia a que eles tinham de ter atenção durante aqueles takes longos. Eu acho que eles estabeleceram uma ligação fantástica, quase ao ponto de serem a mesma pessoa.
Jordi: E mesmo entre as personagens principais. Havia algum receio de que isso se perdesse, porque, ao fim de cinco dias de filmagens, tivemos de interromper por causa da COVID-19. Em tão pouco tempo, as pessoas já se davam muito bem umas com as outras e isso nota-se no filme, mas, com aquela paragem de seis meses, tinha receio de que se perdesse a química. Mas, quando retomámos as gravações, foi como se o tempo não tivesse passado.
Há muitos detalhes que tornam o filme autêntico, pequenas coisas que marcam. Falem-nos um pouco sobre isso.
Jordi: Tem de parecer real. O engraçado é que o ator que faz de guia é um dos maiores podcasters de cinema na Bélgica, e a pessoa que faz a videochamada no filme é o coapresentador dele. Claro que, fora da Bélgica, como não conhecem, ninguém se apercebe desse pormenor, mas para os belgas é engraçado.
Thomas: [Nós usámos esses detalhes] para quebrar um bocadinho a atenção dos espectadores.
Jordi: Há muito diálogo, muita explicação, e precisávamos de algo que despertasse o interesse.
E como é que começa a vossa paixão por filmes de terror?
Jordi: É muito antiga. Quando era criança, o primeiro filme de terror que vi foi o Nightmare on Elm Street 3. Na Bélgica, tínhamos um programa de televisão no canal público que mostrava aqueles filmes de terror muito maus dos anos 70 e 80. Foi nesse programa que vi o Cannibal Holocaust quando tinha uns 12 ou 13 anos. Portanto, comecei a ver filmes de terror muito cedo. Depois, na adolescência, quando comecei a ter acesso à Internet, já conseguia pesquisar mais e procurava esses filmes nos clubes de vídeo.
Thomas: No meu caso, foi nos clubes de vídeo. Quando era mais novo, como os meus pais trabalhavam muito e por turnos, e nós vivíamos na cidade, não brincávamos muito na rua. Então, íamos aos clubes de vídeo escolher seis filmes para ver durante o fim de semana e nas férias. Comecei por ver os filmes do Schwarzenegger e do Stallone, mas depois as capas dos filmes de terror chamaram-me a atenção. Eu ainda me lembro das capas dos filmes dessa altura.
Jordi: Algumas conseguiam ser melhores do que o filme!
Thomas: Pois era. As capas intrigavam-me ao mesmo tempo que me assustavam, e isso prendia-me a atenção. Acho que o primeiro filme que vi foi o Alien, e aquela capa intrigou-me durante anos. Tinha 8 ou 9 anos quando vi o Alien, depois seguiu-se o Critters e o Halloween e outros. Acho que começou aí.
O que é que acham que faz um bom filme de terror?
Jordi: [risos] Essa pergunta é difícil! Fizeram-me a mesma pergunta há umas semanas e há tantas maneiras de fazer um bom filme de terror. Mas toda a gente diz que o terror tem de ser alguma coisa. Para uns, tem de ter sangue e gore. Para outros, tem de ser assustador e ter jump scares. Para mim, regra geral, um bom filme de terror tem de ter uma certa atmosfera. Eu acho que podes fazer um filme de terror a partir de qualquer tema no mundo, desde que consigas capturar aquela atmosfera obscura que te leva ao terror.
Thomas: Aquela sensação de não quereres tirar os olhos do ecrã. Tu vês isso em filmes como o It Follows, que não tem gore nenhum.
Jordi: Também pode ser ao contrário. O melhor elogio que já fizeram ao Duyster veio de uma amiga minha, que ficou furiosa durante o filme e gritou «vai-te foder, Jordi!» Esse foi o melhor elogio. [risos]
E como foi a experiência de vir ao Fantasporto?
Thomas: É uma honra exibirmos o filme aqui. Acho que o Duyster já passou por 15 ou 16 festivais, incluindo o Razor Reel, onde teve a sua antestreia mundial. O filme já passou pelos Estados Unidos, América do Sul, Europa, mas, quando foi aceite aqui no Fantasporto, ficámos mesmo contentes.
Jordi: É um festival muito divertido e a hospitalidade é óptima.
Têm promovido muito o filme um pouco por todo o mundo?
Thomas: Não estivemos em muitos festivais fora da Bélgica, por causa da COVID-19.
Jordi: O Fantasporto é o primeiro fora da Bélgica onde estamos juntos. Mas o filme já passou por 16 festivais.
Thomas: Mas sem estarmos presentes.
Como é essa sensação de ter o filme em vários festivais?
Jordi: Ainda acho fantástico que tantas pessoas já tenham visto o meu trabalho, e é estranho e porreiro ao mesmo tempo. Ao início, ainda seguia todas as críticas atentamente no Letterboxd, quase todas as semanas. Agora, já não faço tanto isso, mas não deixa de ser estranho que tantas pessoas no mundo tenham visto algo em que trabalhámos durante tantos meses.
Thomas: É tão bom que, em 2022, possamos finalmente ir a festivais com a nossa equipa, ao mesmo tempo que o filme está a ser exibido online na Argentina e no cinema aqui no Porto. É quase mágico.
Jordi: Na Bélgica, toda a gente conhecia o Duyster, por isso, quando víamos as críticas no Letterboxd, conhecíamos aquelas pessoas pelo nome ou porque já tínhamos falado com elas. Havia essa ligação. Agora que o filme já foi visto em todo o mundo, não conhecemos ninguém e isso é espetacular.
Thomas: E o distribuidor que comprou os direitos do filme vai lançar um DVD e um Blu-ray que vão estar disponíveis na Amazon para todo o mundo, por isso ainda vamos chegar a muitas mais pessoas.
Qual é a sensação de verem o vosso filme sair em DVD?
Thomas: É bom, é muito bom. E quando entramos numa loja e vemos o nosso filme à venda…
Jordi: É surreal, surreal.
Estavam a fazer podcasts e agora têm o vosso próprio filme!
Jordi: Sim! É surreal! E estamos também a planear lançar a banda sonora original, com canções de bandas que conhecemos, de amigos nossos. Quando estávamos a trabalhar no guião, como o filme é found footage, pensámos no que iríamos fazer em relação à música. Porque o som e a música são uma parte importante do filme, e em found footage não podes usar muita coisa, praticamente não existe.
Thomas: Era mesmo importante acertarmos na atmosfera, mas em filmes de found footage não tens música.
Jordi: Não podemos usá-la! Então, decidimos que íamos ter música quando as pessoas estão no bar ou no carro, e aquelas bandas são todas de amigos nossos. Quando fizemos a proposta a uma empresa na Bélgica para lançar um disco com a banda sonora, o CEO disse-nos que tinha estado na antestreia do filme no Razor Reel Film Festival, tinha adorado o filme e, sim, queria pegar no projeto.
E há mais coisas planeadas para o futuro?
Thomas: Estou a tentar fazer um filme com outro amigo meu. Já escrevemos o guião, mas arranjar investimento é sempre o maior problema. Neste momento, é difícil falar do projeto em pormenor porque, se não tivermos dinheiro, ele não vai acontecer.
Jordi: Eu estou a trabalhar num guião sobre a comunidade punk belga, e isso deve estar perdido em cima da secretária de um estúdio qualquer. Se calhar, tenho notícias para dar daqui a 20 anos. [risos]
Thomas: Ou no próximo Fantasporto!
Disseram que não há muito terror na Bélgica, mas como é que o Duyster foi recebido pelos fãs do género?
Jordi: Há alguns grandes festivais de cinema dentro do género, como o Offscreen e o BIFFF. Acho que esses são os maiores. Mas o Razor Reel, para o qual fomos convidados, também tem uma comunidade fiel de seguidores, é um festival bastante conhecido pelos fãs do género na Bélgica. A comunidade é muito pequena, mas são apaixonados pelo género, e essa é a parte boa. Eu faço sempre a comparação com as bandas e os concertos punk, porque são sempre alternativos, nunca vão ser mainstream. Mas o espírito de comunidade é o mesmo que no terror.
Thomas: Nós notámos esse apoio durante a nossa campanha de crowdfunding. E mesmo quando tivemos de interromper as filmagens por causa do confinamento, as pessoas mantinham o apoio através das redes sociais.
Jordi: E até agora. Publiquei no Instagram que o Blu-ray já estava em pré-venda e recebi imensas mensagens de pessoas que fizeram logo a encomenda. As pessoas querem mesmo ver o filme e isso é prova de como esta comunidade é extraordinária.
Thomas: E é uma honra fazer parte da história do terror belga, porque não há muitos filmes de terror. E esperamos que depois de nós haja mais gente a querer fazer terror, ver terror. Não é que eu nos veja como visionários, mas esperamos que as pessoas sigam o nosso exemplo e percebam que também podem fazer o mesmo.
Também espero que sim! Gostei muito do filme.
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Cláudio André Redondo
Apaixonado pelos livros desde os oito anos. Desde essa idade que sempre se aventurou pela escrita e foi acumulando histórias na gaveta, mas só recentemente começou a contar histórias de terror. É nesse género que encontra, atualmente, o maior prazer de escrever, sentindo por vezes que abriu uma porta para um lugar sombrio de onde figuras negras procuram sair. A gaveta abriu-se, resta saber o que de lá vem.