Entrevista com o autor Nuno Duarte

Argumentista de O Baile, assim como escritor e guionista.

«Há quem veja o terror em Portugal como um género menos digno, e acho que é isso que, por vezes, atemoriza as pessoas que quereriam trabalhar em terror. Têm medo de ser criticadas. Acho bom estarem a abrir-se estas portas, que a universalidade nos trouxe, para as pessoas terem menos medo de apostar.»

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Sandra Henriques

Antes de começar a gravar esta entrevista com o Nuno Duarte, confessei-lhe que tinha saudades das Produções Fictícias, de que ele fez parte, e de muitos dos sketches que tinham escrito para o Herman José.

Nada relacionado com «naquele tempo é que era bom», pelo contrário. Das pessoas e das obras que nos marcam, como fãs ou futuros criadores, é sempre saudável falar com nostalgia, mas com a certeza (e a aceitação) de que certas fases já não voltam, e não há nada de errado nisso.
Para já, o projeto que lhe ocupa mais tempo (entre outros) é a adaptação da banda desenhada O Baile, a longa-metragem de animação.

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A tua biografia é bastante rica de experiências. Estudaste Direito, que não exerceste, mas desde muito cedo começaste a escrever.

O curso de Direito era tão confinante que, por um lado, foi bom para começar cada vez mais a escrever, começar a criar. [Escrever] era o meu escape. No último ano [do curso], arranjei um emprego como editor de histórias, argumentista e ajudante de animação numa pequena empresa chamada Magic Toons. Aí, tive de tomar uma decisão, que foi seguir este caminho. Pouco tempo depois, comecei a tirar cursos de escrita, com o António Pedro Vasconcelos, de escrita para cinema. E de escrita para televisão, com o Rui Veiga. Nessa altura, em paralelo, já estava a escrever guiões de banda desenhada. E, com a insensatez da juventude por um lado, e com a coragem por outro, decidi escrever uns sketches e entregar ao Herman [José]. Umas semanas depois, ligaram-me e disseram-me «como ele não lida com argumentistas, marcou-lhe uma entrevista com o Nuno Artur Silva», das Produções Fictícias. Fui chamado e, duas semanas depois, estava na primeira reunião de formação para o Inimigo Público e a escrever para as Manobras de Diversão. Comecei a escrever tanto humor como ficção, coisas para miúdos, como O Inspector Max.

Quando é que te surge a ideia para O Baile?

Curiosamente, O Baile nasce quando estou a trabalhar nas Produções Fictícias, quando estava a fazer pesquisa para um filme que nunca chegou a avançar. Uma história sobre as FP-25, em que tivemos acesso a uma série de entrevistas com protagonistas da época, entre os quais alguns antigos membros da PIDE. O projeto não avançou, mas acabei por me interessar pelo tema, porque um dos ex-PIDE tinha uns laivos de arrependimento, e pensei «o que seria estar num país de zombies que seguiam uma ideologia forte, e um algoz desse regime começar a ter laivos de arrependimento». Tinha várias imagens de terror e, quando tinha trabalhado no Turno da Noite, já tinha tido várias ideias para histórias de terror, suspense, com coisas que nos ligassem a uma realidade portuguesa, mas que também fossem fortes internacionalmente. Uma dessas realidades mais fortes é a da faina, todo aquela negrume, a neblina, o medo, aquela tradição das mulheres vestidas de negro, a aldeia inteira juntar-se para puxar as redes. Tive a imagem das redes puxadas do mar por braços cadavéricos de quem ficou na faina também. Esses dois mundos começaram a juntar-se e liguei tudo a uma realidade também muito portuguesa, a da vinda do Papa, em 1967. Salazar não se entendia muito bem com a Santa Sé, isso é verídico, e não queria que nada desse azo a problemas. Ele mandou, de facto, vários agentes da PIDE a todos os sítios onde houvesse agitação política. E eu extrapolo [isso] e junto-lhe as histórias de acontecimentos sobrenaturais. É assim que nasce essa mistura de ingredientes.

Podias ter enviado um exército de inspetores, mas optas por enviar apenas o Inspector Rui, que, ainda por cima, está numa fase de luta interna.

Porque é à portuguesa. «Vai lá ver o que é que se passa, que dizem que há umas coisas a acontecer. Vai lá ver e faz-nos um relatório e depois logo vemos se é preciso mandar mais alguém ou não.» Tinha vencido um concurso com O Turno da Noite e pensei que [a ideia para O Baile] dava um bom projeto para um filme ou uma animação. Mas não aconteceu. Pensei em fazer alguma coisa com a malta do Lisbon Studios. É então que aparece a Joana [Afonso] e eu me apaixono pelos desenhos dela. Como costumo dizer, ela transforma o assustador em doce, e o doce em assustador, e eu começo a moldar a história em torno disso. Há apontamentos de humor no livro. Em cada projeto de banda desenhada e de animação, potencio muito o talento do artista, para ir buscar o melhor deles. Gosto de escrever coisas que eles gostem de desenhar e é por isso que trabalho quase sempre de forma diferente, consoante o artista.

Quantas edições já tem o livro?

Vamos em três edições portuguesas, uma edição em inglês, uma italiana e uma em polaco.

O que só prova que esta história é mais universal do que se pensa. Já tiveste feedback de alguém que não fosse português, sem ligação à nossa realidade?

Ainda recentemente, tivemos um feedback muito interessante de quando o João [Alves] foi à Coreia. Para contextualizar, profissionalmente, tenho estado em contacto com plataformas de streaming internacionais, a propor conteúdos, etc. E o que é pedido em termos de conteúdo, neste momento, é algo universal no que diz respeito à compreensão, mas que tenha algum elemento não muito visto em termos globais. Que seja, vá, «exótico». Portugal consegue [fazer] isso, e acho que é essa a mais-valia d’O Baile. Há ali um sentimento universal, de medo, de alguém apanhado numa coisa que não gosta de fazer e que se está a transformar, e existe a analogia dos zombies, que querem que o inspetor seja um deles. Depois, há um panorama muito português, da aldeia piscatória, das pessoas que viviam naquele fado, no isolamento, no medo. Acho que [essa realidade], às vezes, não traduz bem, no livro. O argumento tem muitas especificidades portuguesas.

No filme, depois, terás mais espaço para desenvolver isso.

Sim, o filme é um objeto muito mais pessoal. O livro é praticamente action-driven, enquanto o filme é character-driven. O filme é muito sobre o percurso de vida do protagonista e os factos que o levaram a ser quem é. Percebes por que razão esta pessoa está neste ponto fulcral, neste cruzamento de vida. A série Terra Nova — que escrevi há dois anos com o Artur Ribeiro e que ganhou o Prémio Sophia para Melhor Série — também foi importante para O Baile, porque é uma história de mar e de pescadores, mas também das populações destas localidades piscatórias, de como lidavam com os seus medos e inseguranças. Há muitas coisas agora, na versão filme, em que tenho outro domínio da linguagem, da vida daquelas pessoas, que vão dar ainda mais credibilidade ao argumento.

Há 10 anos, calculo que por altura do lançamento d’O Baile, disseste ao jornal Público: «se a cultura é um nicho e a leitura também, então a BD é apenas um cantinho nesse nicho». Ainda sentes isso?

Acho que continua a ser um nicho, mas mais respeitado. Houve uma coisa importantíssima: a geração mais jovem que hoje gosta de banda desenhada começou a ler manga, e o advento da manga em Portugal abriu os olhos para muitos outros géneros. A manga tem essa vantagem temática que os comics americanos e europeus não tinham. As portas da universalidade, por causa da Internet, foram ótimas, porque há portugueses a trabalhar no estrangeiro e a provar que são tão bons ou melhores do que os estrangeiros. Quando vês que o Filipe Melo ganhou mais um prémio, ou que está a editar na América, ou que tem um livro que vai ser adaptado a série, isso começa a chamar a atenção. Tornou-se mais frequente falar-se de cultura pop. Como tal, até aos nichos lhes é dada uma nova luz. E deixou de ser «vergonhoso» andar com uma banda desenhada na mão.

Sei que, como referência, sugeriste à Joana que visse os filmes antigos do Evil Dead.

Sim, precisamente pelo ridículo e por ter inspirado algumas imagens do livro. Por exemplo, as velhas a porem as sardinhas a secar naquelas redes ao sol e, de repente, estar lá uma mão humana no meio. Está lá aquele bocadinho do Sam Raimi, e vamos ter uma homenagem a isso no filme.

Em que estado achas que está o terror português? 

Acho que um dos grandes problemas é não termos uma produção nacional de terror, seja de cinema ou de séries, fora dos festivais. E são normalmente coisas de escola, ou experimentais, que não chegam ao grande público. Depois, os géneros em Portugal ainda são vistos como coisas menores. Não tendo um meio-termo no cinema, é difícil fazer coisas de nicho, ou de género. Também temos o problema de haver muito pouco dinheiro e de haver muito pouca gente a investir. Há quem veja o terror em Portugal como um género menos digno, e acho que é isso que, por vezes, afasta as pessoas que quereriam trabalhar em terror. Têm medo de ser criticadas. Acho bom estarem a abrir-se estas portas, que a universalidade nos trouxe, para as pessoas terem menos medo de apostar. Há uns anos, seria impossível fazer uma coisa como a versão cinematográfica d’O Baile.

O género tem demorado algum tempo a sair da «bolha» do nicho. Estamos sempre à espera do momento «é agora!» que tivemos com o Coisa Ruim e o I’ll See You in My Dreams. Apesar disso, a série de animação de terror de que falavas, Turno da Noite, passou na televisão. Como é que foi essa experiência?

O Turno da Noite foi um projeto que misturou o meu gosto pelo sobrenatural com minicontos com pendor para o humor negro. Foi uma experiência muito gratificante, porque me permitiu a mim e ao realizador, o Carlos Fernandes, trabalhar com referências cinematográficas e narrativas com que nos identificávamos, num período em que, profissionalmente, fazíamos muitos trabalhos comerciais confinantes e repetitivos.
Se a parte da produção do projeto em si foi uma das mais gratificantes dos meus trabalhos para televisão, a falta de visibilidade e de aposta no projeto, quer em festivais quer numa perspetiva comercial, foi uma clara desilusão.

Em que projeto estás a trabalhar agora, além d’O Baile, que possas partilhar connosco?

Além do guião d’O Baile — em que já só estou a acertar diálogos, ou seja, estará muito próximo da versão final —, estou a trabalhar na curta Nós, que ganhou o apoio ao desenvolvimento, baseada na história de banda desenhada que fiz com a Rita Alfaiate e que terá como realizador o Bruno Caetano.

Entretanto, recebi um apoio da Sociedade Portuguesa de Autores para trabalhar no guião de uma biografia ficcionada de uma importante figura da música e da cultura portuguesa.
Para finalizar, estou também a desenvolver, com um grupo de criadores amigos, uma série de antologia de contos de terror para o mercado do streaming.