Entrevista a Michel Simeão, criador do Projecto Casa Assombrada

Teatro imersivo de terror e o que vem depois do Cinema Medo

Falar com Michel Simeão, fundador da associação cultural Teatro Reflexo e o criador do Projecto Casa Assombrada, sobre as experiências de teatro imersivo de terror e não revelar todos os segredos é complicado para quem é fã do género e para quem, como eu, acabou de passar pela sua mais recente criação, Cinema Medo

O ator e encenador respondeu a todas as minhas dúvidas sobre a história que se desenrolou naquela noite nas entranhas do Cinema São Jorge, em Lisboa, mas só vou revelar algumas aqui. Até porque, apesar de os bilhetes já terem esgotado, ainda há mais sessões até julho e não quero privar ninguém de se embrenhar nesta narrativa. Para os mais curiosos, podem ler o artigo da Maria Varanda na Fábrica do Terror sobre a experiência.

Aquilo que posso descortinar — e em breve daremos mais notícias sobre isso — é que vem aí uma nova experiência.

De Sandra Henriques

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Começas primeiro com a associação cultural Teatro Reflexo. Como e quando é que pensas em fazer uma experiência de teatro de terror imersivo?

Quando comecei, nem sabia muito bem o que estava a fazer, na verdade. [risos] Sempre tive este gostinho pelo terror. Sempre gostei de filmes de terror, sempre fui fã, sempre tive muito medo quando era miúdo. À medida que fui crescendo, percebi que me dava aquilo que é suposto vivermos da experiência do terror — que é a adrenalina. Consigo muito entrar no suspension of disbelief quando estou a ver terror, só assim é que gosto de ver. Eu vejo terror para ser assustado. Não vejo terror para o desconstruir. Quero entrar naquilo.

A primeira vez que percebi que queria fazer isto foi quando fui à Escócia, em 2005, e percebi que eles tinham imensos eventos de terror a acontecer por todo o lado. Fiz uma experiência e adorei. Era uma experiência na rua, andávamos por vários sítios, contavam-nos histórias de coisas que tinham acontecido ali, que eram vendidas como reais. Nunca soube se era real ou não, mas não me interessa. Para mim, era real, eu queria que fosse real. E aquilo acabava num jazigo onde ficávamos fechados lá dentro. Estava muito bem feito e era só com um guia turístico. Saí dali cheio de adrenalina, a pensar «não há nada disto em Portugal, adorava fazer uma coisa do género». Fiquei sempre com isto na cabeça.

Depois, regresso e continuo aqui com a minha vida da associação cultural. Sempre tive uma tendência para desconstruir o teatro convencional. A primeira peça de terror que fiz chamava-se Castelo de Cartas, em Sintra, e era uma peça de terror psicológico. Muito hardcore, só com duas atrizes. Havia uma altura em que uma espetava uma tesoura na nuca da outra, havia esguichos de sangue, era muito pesado. Aí, percebi que o terror era uma coisa que queria trabalhar no teatro, isto em 2008. Pensei então que estava a fazer algo de imersivo, porque a iluminação da cena era toda feita pelas pessoas. Era um blackout total, onde as pessoas tinham lanternas e apontavam luz para onde queriam. A iluminação estava na mão do público.

Depois, tive a oportunidade de trabalhar na Casa-Museu Leal da Câmara, logo a seguir a este espetáculo, e foi aí que fiz a minha primeira peça interativa. Era um crime, morria alguém, e depois o público era convidado pelas mãos da morta, degolada, a descobrir quem era o assassino. Íamos visitar a casa às escuras e havia jogos pelo meio. Por cada jogo que as pessoas ganhavam, viam uma nova cena secreta, e isto correu muito bem. Adorei fazer aquilo, estar ali com público, no decor real, [num espetáculo] sempre esgotado.

A partir daí, percebi que gostava da interatividade, sempre com a ideia da [experiência da] Escócia. Um dia [em 2010], há um senhor que me diz que tem uma casa velha em Lisboa, em Alcântara, e se eu queria ir fazer lá qualquer coisa no atelier. Quando vi a casa, disse: «eu, no atelier, não quero fazer nada, mas a casa é espetacular. Posso fazer aqui alguma coisa?». E ele aceitou. A casa era super tétrica, do mais sinistro que pode haver, com dois andares e vários quartos, por isso resolvi criar toda uma narrativa à volta da casa. Fiz visitas guiadas, como na Escócia, eu e mais uma colega contávamos a história da casa — que ficcionámos, mas vendemos como real — e depois deixámos as pessoas ter contacto com a casa e entrarem às escuras nos quartos. E aquilo foi um estrondo! De repente, estava tudo esgotado! Eu não tinha comunicação nenhuma, era um projeto super underground, começou muito torto porque eu não sabia bem o que estava a fazer. Fui afinando, afinando, afinando, era work in progress. Estivemos dois meses lá.

Percebi que o terror, desta forma, podia ser uma coisa muito boa. E que havia muito público. Em 2015, depois de andar à procura de um espaço em Sintra, a Câmara Municipal de Sintra [fala-me] da Quinta Nova da Assunção. Disseram-me que, se eu quisesse fazer lá algum projeto, podia fazer. E foi aí que tudo mudou. Era uma casa com 15 assoalhadas, com salões enormes contíguos, que dá uma oportunidade de percurso incrível. Usei as histórias da casa, que ia contando, romanceando sempre um bocadinho — faço adaptações livres das histórias que me contam —, e fui fazendo esta visita [com audioguias] que rebentou. De repente, ponho aquilo cá fora e não tinha equipa para tomar conta da quantidade de pessoas que estavam a querer comprar bilhetes. Foi assim que o Projecto Casa Assombrada cresceu. Dei-lhe esse nome, na altura, porque [ainda] era um laboratório para mim, e depois o projeto ganhou asas e comecei a perceber que estava a fazer teatro imersivo. A partir daí, fui sempre procurando novos espaços, sendo que Belas foi o espaço mais importante, que determinou muito o nosso percurso, não só pelas caraterísticas incríveis daquele palácio, mas por ter também histórias que podemos usar a nosso favor. Estivemos numa casa em Sintra, onde fizemos O Internato. Depois, viemos para uma casa em Lisboa, o Palácio Cabral, onde fizemos o Ímpios. E fomos fazer O Matadouro [em Leiria].

E mais recentemente o Cinema Medo, no São Jorge.

Sim, surgiu esta proposta da EGEAC para fazermos [uma experiência] no Cinema São Jorge, [um espaço que] é muito grande e me obrigou a um outro tipo de contenção, a que não estou habituado. Perdi-me completamente quando estava a trabalhar ali, mas tive um bocadinho de medo por ser grande e por ter muitas questões de segurança. Não posso chegar ali e dar asas à imaginação, tinha de ser uma coisa contida. De todas, é a que considero a minha experiência de terror mais ligeira, mas mesmo assim, tendo em conta a dinâmica do cinema, acho que conseguimos construir ali uma coisa muito engraçada.

Quando estás a desenhar a experiência, o que é que vem primeiro: o espaço ou a história?

É o espaço. Parte tudo do espaço. Eu comunico com o espaço, o espaço comunica comigo. Olho para o espaço e acho que é a própria geografia, a sua arquitetura, a própria dinâmica. Começo logo a pensar na movimentação das pessoas e a tentar perceber que tipo de história é que suscita.

Qual é que foi o teu maior desafio a criar o Cinema Medo? 

Foi gerir tanto espaço, tantas pessoas, porque tenho ali uma equipa de mais de 30 pessoas. Com atores e figuração, tenho muita gente para gerir e, para teres uma noção, os meus espetáculos imersivos normalmente são com equipas de 17, 20 pessoas, no máximo, contando com os substitutos. Ali, tinha 30 e tal pessoas num espaço muito grande para animar, em que tudo tinha de ser interessante e tudo tinha de estar ligado, e muita contenção. Não pude cenografar o espaço, tive de o usar tal como ele é. Fui seguindo a minha intuição, que é mais ou menos aquilo que faço sempre, e acabou por resultar. Estou muito contente com a experiência de terror imersiva que conseguimos fazer dentro de um cinema como aqueles.

Alguma vez tiveste uma situação em que alguém do público reage de forma menos positiva à experiência ou ao elenco?

Já, em Belas. [risos] Belas era uma experiência muito sensorial, não havia um guião com uma narrativa, porque ela era contada nos audioguias, mas, de vez em quando, cruzavas-te com aquilo que poderia ser um espectro, um vulto, não tinhas bem a noção. A experiência vivia muito daquilo que não se via, mas daquilo que se sentia, por isso é que era um terror muito hardcore e por isso é que as pessoas ainda hoje falam de Belas, e temos esta cruz de comparação sempre com o que fizemos lá. [risos] É normal. Mas, lá está, fizemos uma coisa que o espaço permitia fazer, e eu quis muito não mostrar, não ser demasiado óbvio, não ter personagens, atores, ali. Às vezes, via-se uma figura que claramente aparecia e outras vezes víamos sombras ou vultos, e as pessoas, para materializarem aqueles vultos, agarravam-se a eles. Aqui, no Cinema Medo, é mais contido.

Quantas vezes ensaias antes de lançar uma experiência?

Muitas. No São Jorge, foi o espetáculo em que tive mais versões teste. Tem de ser muito, muito testado, porque há muita coisa que pode correr mal e aquilo tem de funcionar. Principalmente ali, tem de funcionar como um relógio suíço, porque são sessões contínuas. Temos de garantir que os tempos estão todos certos, mas, como envolve zonas tão distantes e tanta gente, teve de ser ensaiado muitas vezes. Estivemos cerca de duas semanas, quase, a ensaiar diariamente com grupos de pessoas que íamos convidando e a quem pedíamos feedback. Normalmente, fazemos sempre isso. No São Jorge, fizemos mesmo muito isso. Até estar bem afinado e dizer «OK, a fórmula é esta, não mexe mais».

E o que podemos esperar das próximas experiências?

O Cinema Medo talvez esteja em reposição em 2023. Estamos a fazer todos os esforços nesse sentido.

Vais acrescentar alguma coisa? Vais manter? Ou logo vês?

Na altura, vou ver, porque estas experiências são um organismo vivo, estão sempre em transformação. Fazemos cinco sessões daquelas por noite, em que passam três grupos por cada zona. E isso significa que faço, numa noite, 30 vezes a mesma cena. Nós fazemos o mesmo texto 30 vezes por noite, temos de ser muito criativos para aquilo não ser só uma coisa que depois nos vai enfadar de uma forma que seja já impossível de dizer. Estamos sempre a procurar novas abordagens e, como a nossa contracena é o público, estamos sempre abertos e disponíveis para beber de vocês aquilo que possa ser uma forma diferente de fazer o texto, descobrir de repente outra maneira. Estamos todos nos nossos aposentos, sempre a criar. Acredito que, provavelmente, vou ter novos atores. Não sei como vai ser a vida do elenco que está a trabalhar comigo agora, portanto isso vai trazer-me coisas novas, mas a estrutura é esta. Nem me atrevo a mexer mais nela. [risos]

Esta foi a primeira vez que incluíste a vertente jogo?

Sim, em termos de competição nunca tinha feito. Pensei: «já que o espaço é tão grande e que vou dividir as pessoas em três zonas diferentes, porque não? Vou pô-las a competir umas com as outras». Nos outros espetáculos, os desafios à coragem estão sempre presentes. Em Belas, isso já acontecia. Havia determinadas salas em que, para descobrires determinada coisa sobre a narrativa, tinhas de fazer um desafio, mas aí, muitas vezes, as pessoas não fazem. Preferem não saber a narrativa. Aqui [no Cinema Medo], como é para ganhar, vão um bocadinho mais longe.

E sobre a próxima experiência, já podes desvendar pormenores?

Posso falar, só levantar assim uma pontinha do véu. Vamos voltar ao formato muito próximo daquilo que fizemos em Belas. Isto porque tivemos a oportunidade e o privilégio de ir trabalhar para um espaço (que vai ser revelado em breve) que tem de facto histórias, e de todos é aquele que nos deixa um bocadinho «vamos mesmo querer trabalhar aqui?» É um espaço que tem as suas histórias, é um sítio onde entras e sentes algum desconforto. É uma casa muito grande, um palacete com mais carga histórica do que todos os sítios onde trabalhei. É na Grande Lisboa, um monumento histórico com séculos e séculos e séculos de história, de vida e de morte. Isso está impresso no próprio espaço, não há como fugir disso. Não diria que é um back to form, nem quero vender isto como um Belas II, não quero criar essas expetativas nas pessoas, mas será o mais próximo do que fizemos em Belas. Vamos voltar à estrutura do audioguia, mas vamos também cruzar isto com reconstituições históricas, ter atores, coisa que não fiz em Belas. O que é que não há aqui? Jogo. Já tive a minha dose de jogo e detesto repetir-me, então aqui vai ser uma proposta de contacto com o sobrenatural de uma forma mais crua. Quero mesmo dar esta oportunidade, poder estar num espaço que te vai poder fazer sentir determinadas coisas e disponibilizares-te a senti-las. Há histórias que nos foram contadas que depois foram adaptadas de forma livre, há sempre uma zona de ficção cruzada com a carga real no espaço. E é isso que vamos propor.