MOTELX 2024: O terror das mulheres
Alguns tiros ao lado, outra vez folclore e uns pozinhos de sci-fi.
Na sexta-feira 13 não se falava noutra coisa: a Demi Moore vestiu a pele que lhe serve que nem uma luva.
Com o festival a caminhar em passos largos para o fecho, a equipa da Fábrica do Terror estabeleceu uma espécie de escritório improvisado no primeiro piso do Cinema São Jorge (e até fomos estrelas de um spot do MOTELX com o Jason Vorhees), onde entrevistámos os realizadores das curtas portuguesas, discutimos filmes e tentámos dar palpites sobre os vencedores.
A sexta-feira 13 foi um dia auspicioso para o lançamento de A Volta no Caixão, o novo livro de Pedro Lucas Martins, editado pela Barca. Para quem não conseguiu estar, gravámos tudo e podem ver aqui a apresentação completa.
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Planet B, de Aude Léa Rapin
Planet B, de Aude Léa Rapin, decorre em 2039, em França, numa altura em que a falta de medidas para combater as alterações climáticas leva a que associações ambientalistas se tornem extremistas ao ponto de serem consideradas terroristas. No meio deste clima tenso, o controlo da população assume proporções quase de ditadura, com os cidadãos a serem constantemente vigiados. Julia, depois de ser intercetada por forças de segurança, perde a consciência e, quando a recupera, encontra-se numa prisão virtual (Planeta B) onde, juntamente com outros ativistas, lhe é proposta a liberdade em troca dos nomes dos restantes membros da associação.
Rapidamente se percebe que aquela não é uma simples prisão e que a forma de fazer pressão sobre os prisioneiros é tudo menos ética. Nour, uma refugiada iraquiana ilegal que procura desesperadamente uma forma de sair de França antes de ser apanhada, acaba por descobrir acidentalmente a prisão e torna-se na única esperança para a liberdade dos prisioneiros.
É um filme interessante, que levanta questões importantes, não só sobre a falta de ações concretas no combate às alterações climáticas, mas também acerca da liberdade dos indivíduos, do seu direito à privacidade e também sobre os limites éticos de como tratar os cidadãos.
Punch, de Ross Scott
Nesta microcurta, um ciclista encontra um teatro de marionetas no meio de um bosque. Curioso, para para observar o mesmo e rapidamente se apercebe de que existe uma estranha semelhança entre o teatro e a realidade.
Um filme curto, de apenas três minutos, mas muito bem executado, entretendo na medida certa.
Una noche con Adela, de Hugo Ruiz
Una noche con Adela, de Hugo Ruiz, conta a história de uma noite na vida de Adela, em que a mesma se decide vingar daqueles que tornaram a sua vida numa existência vazia e frustrada. Vamos conhecendo, ao longo da noite, um pouco de quem é esta personagem e da forma autodestrutiva com que ela vive a sua vida, culminando com o descobrir do porquê de ela ser assim, num final chocante e brilhante. A forma como a história é contada funciona muito bem, e a interpretação de Laura Galán pode considerar-se excelente.
A grande crítica que se pode fazer ao filme é a de que é excessivamente longo, mas, considerando que é contado de forma linear, num plano de sequência, talvez não funcionasse se fosse mais curto.
Handling the Undead, de Thea Hvistendahl
Um filme sobre mortos-vivos diferente. Um fenómeno em Oslo leva todos os equipamentos elétricos a desligarem-se. Depois disso, os mortos começam a voltar à vida. No filme, seguimos três famílias que lidam com o regresso de entes queridos dos quais já se tinham despedido e que julgavam não voltar a ver.
Ao contrário da maioria dos filmes sobre zombies, neste filme, os mortos-vivos limitam-se a existir de forma apática, quase como se não estivessem realmente vivos e fossem apenas um corpo presente que existe sem emoções, uma espécie de memória em formato físico. E, como tal, mais do que um filme sobre zombies, é um filme acerca do luto e de como os que ficam lidam com os sentimentos em relação àqueles que partiram. Um filme que nos leva a questionar se a saudade deve imperar ou se devemos aceitar que aqueles que morreram já não podem voltar e que devemos apenas deixá-los descansar.
O filme levanta questões interessantes como: quando é que alguém deixa de ser quem é? Um corpo, mesmo que vivo, continua a ser a mesma pessoa, apesar de tudo o que caracterizava a sua personalidade ter desaparecido? Ou aquilo a que nos habituámos a chamar de alma é essencial para a existência humana e, sem a mesma, um corpo passa a ser apenas um pedaço de carne que funciona como ligação às memórias do passado?
In the Blind Spot, de Ayse Polat
O filme começa com uma equipa alemã que se encontra a fazer um documentário numa aldeia curda, no nordeste da Turquia, e que avança ao longo dos seus capítulos para as perspetivas de diferentes personagens, todas parte da mesma história. In The Blind Spot pode ser considerado um filme de terror social, mas assume muito mais as categorias de thriller e mistério, sendo mais um ano em que os amantes de terror (pelo menos estes) saem algo desiludidos da sala Manoel de Oliveira.
Não obstante ser fora do desejado para o género, In The Blind Spot é uma crítica bem elaborada à xenofobia para com a população curda e os crimes cometidos na Turquia, com um excelente desempenho dos seus atores, com uma forte promessa de uma atriz infantil.
Oddity, de Damian McCarthy
Quem viu Caveat na edição de 2020 do MOTELX sabe que ver no cartaz de apresentação que o filme foi realizado por Damian McCarthy é uma promessa de uma óptima sessão para os amantes de terror.
Com o MOTELX a apoiar mais um filme irlandês, Oddity estreou-se com uma sala não cheia, mas bem composta.
Darcy, uma médium cega e dona de uma loja de antiguidades assombradas, representada sublimemente por Carolyn Bracken, tenta descobrir a verdade por trás do homicídio da sua irmã gémea Dani, recorrendo às suas capacidades extra-naturais.
Oddity tem um argumento bem estruturado, incorporando uma abordagem ao estigma relacionado com saúde e doença mental que poderia dar origem a um filme paralelo, passado no representado hospital psiquiátrico.
Fugindo à abordagem clichê dos objetos assombrados, e intercalando a linha temporal atual com o que aconteceu verdadeiramente a Dani, Oddity preenche quase, quase, todos os critérios e deixa os fãs de terror de barriga bem cheia.
Things Will Be Different, de Michael Felker
Realizado por Michael Felker, Things Will Be Different traz-nos a fuga de dois irmãos após um presumido assalto e a procura de um espaço seguro que envolve viagens no tempo numa casa misteriosa, desenrolando-se em algo muito superior a eles mesmos.
Este ano, no MOTELX, para escolher os filmes não chega ler a ficha técnica — esta edição é um pouco como jogar à roleta russa; os espectadores que arriscaram a sessão das 13 h 40 sofreram o temido azar de uma sexta-feira 13.
Com uma óptima fotografia e um argumento interessante, Things Will Be Different não pertence a um festival de terror, ficando-se pelo suspense, ação e ficção científica.
She Loved Blossoms More, de Yannis Veslemes
Estreia da Grécia no MOTELX, She Loved Blossoms More acompanha três irmãos enlutados e as suas experiências de viagem do tempo para recuperar a falecida mãe.
É uma vivência cinematográfica de terror experimental, em que o espectador deve deixar-se levar e não tentar compreender o argumento — acreditem, não tentem. Quem seja fã de uma recreação química, talvez ajude a gostar do filme.
Fréwaka, de Aislinn Clarke
Fréwaka, um filme irlandês de Aislinn Clarke, surgiu primeiramente com a ideia de realizar uma longa-metragem de terror falada em gaélico. É daí que nasce Fréwaka, honrando as raízes do povo irlandês.
Shoo é contratada para cuidar de Peig, uma idosa que apenas fala gaélico e que reside numa aldeia remota. Shoo descobre que os comportamentos e os delírios bizarros de Peig escondem uma verdade muito mais surreal do que a demência.
Carregado de representações da mitologia gaélica, desde o uso frequente da cor vermelha ao folclore e paganismo, Fréwaka ainda aborda questões relacionadas com o luto e a doença mental, casando todas as temáticas de forma sublime.
Para os amantes de folclore celta, Fréwaka é um filme que merece aguardar pela estreia em cinema ou numa plataforma de streaming.
The Substance, de Coralie Fargeat
Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma apresentadora de televisão despedida no seu 50.° aniversário, vê-se perante a hipótese de tomar uma nova substância que promete criar uma nova e melhor versão de si mesma. Com um senão: tem de trocar a cada sete dias entre a sua versão melhorada e a original.
Numa genial dramatização das exigências feitas às mulheres e criticando os padrões de beleza irreais com os quais somos bombardeados no quotidiano, The Substance põe de parte os fillers e as cirurgias plásticas e leva a idealização ao extremo: gerar uma nova versão de si mesmo.
A união perfeita entre terror corporal, social e ficção científica, The Substance pede aos espectadores que vejam para lá dos efeitos especiais, da exuberante caracterização e dos risos que possam surgir, para observarem a opressão da lei da beleza, o olhar pejorativo do homem e o sofrimento no processo de envelhecimento. Pede-se que se olhe para a autossabotagem e sacrifício que a soberania da juventude e beleza inumana pedem que as mulheres, mas também homens, façam em detrimento da sua integridade física e mental, quando os ideais apregoados nomeiam cada vez mais o valor estético inalcançável como a norma.
Pondo de parte alguns erros que peritos em certas áreas possam encontrar (sim, Cláudio André Redondo, os estúdios não funcionam assim, e sim, senhoras enfermeiras, todos sabemos que se expurgam os sistemas e se tira o garrote antes da agulha), assumindo alguns como propositados e outros como simplificação em prole da história, The Substance é um filme que todos, sem exceção, deveriam ver com o olhar mais sério possível, porque é com seriedade que este problema social tem de ser encarado.