Natal: convidar os mortos para a consoada

Aproxima-se o Natal, os corações enchem-se de alegria, e as pessoas ficam imbuídas do espírito da bondade.

«E pronto, estava eu perdida nestes pensamentos, assumindo que o terror desta época era apenas o consumismo e a falsa bondade que acaba logo no dia 26 de dezembro com as trocas de prendas, quando se me deparam algumas tradições portuguesas que inserem os nossos entes queridos falecidos na consoada!»

Liliana Duarte Pereira

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Aproxima-se o Natal, os corações enchem-se de alegria, e as pessoas ficam imbuídas do espírito da bondade. Não sei se é das luzes, dos fritos típicos da época ou por assumirem que é a data de nascimento de Jesus (espero que as minhas catequistas não estejam a ler isto, mas ouvi dizer que o Natal é uma festa pagã — na verdade, diz-se que Cristo nasceu em outubro, a humanidade é que é perita em enganar-se desde sempre nos cálculos). Assim sendo, se és de uma religião que não permite a comemoração de nascimentos, guarda esta informação e neste Natal empanturra-te com bolo-rei! Afinal, estamos só a comemorar o solstício de inverno.

Sabemos que esta época é apreciada pela maioria das pessoas, talvez porque é tempo de estar no aconchego do lar junto da família ou então num centro comercial qualquer a usar o cartão de crédito ao desbarato.

Tão bom este extremo.

E pronto, estava eu perdida nestes pensamentos, assumindo que o terror desta época era apenas o consumismo e a falsa bondade que acaba logo no dia 26 de dezembro com as trocas de prendas, quando se me deparam algumas tradições portuguesas que inserem os nossos entes queridos falecidos na consoada!


É caso para dizer que os pobres coitados não têm descanso.


Parece que, na zona do Alto Minho, era comum colocar um talher a mais na mesa, destinado ao mais recente familiar falecido. Pelo menos, não havia necessidade de aumentar a quantidade de comida, porque, parecendo que não, é malta que come pouco.

Já na zona do Porto, iam mais longe. Deixavam uma divisão livre com uma consoada montada unicamente para os familiares mortos.

Eu preferia que os mortos ficassem numa sala à parte, apesar de achar um desperdício terem uma ceia que nunca vão comer. Até é fazer pouco. E não estou de todo disponível para ficar no lugar ao lado da cadeira vazia, não vá a tia Eugénia querer meter conversa. Quero apenas deixar-vos a dica de que ficava mais económico e menos bizarro se, em vez de desperdiçarem comida, fizessem só uma reza básica.

Na zona de Guimarães, à meia-noite da véspera de Natal, colocava-se à porta de casa um prato com um pouco de tudo o que tinha sido servido na ceia (uma versão mais contida e poupada). Esta merenda destinada às almas tinha de ser alumiada para que conseguissem ver os petiscos. A crença era de que as almas apareciam em forma de borboleta, de cor branca ou negra, dependendo se vinham na carreira do Céu ou do Inferno.

Fico mais descansada, porque vejo mal e chego à conclusão de que isso não me vai passar depois de morta, pelo que agradeço que utilizem uma lanterna com boa luz. Também me tranquiliza saber que irei ter acesso a comida, independentemente de vir de ambiente ameno ou tórrido.

Noutras localidades, a mesa da consoada não é levantada, para que os mortos possam comparecer e aproveitar o que sobrou (não sei bem se isto é simpático, até mesmo para quem já morreu e não come).

Em Briteiros, era costume rezarem pelo descanso das alminhas, justamente para evitar que viessem incomodar os vivos. Estou de acordo e apoio!

Na zona centro, não faltavam as papas e os doces de abóbora-menina, que é também associada às práticas relacionadas com o culto dos mortos. Minha rica filhó!

Por fim, em determinadas zonas do norte do país, na noite de consoada, há quem estenda palha no chão, em redor da lareira. É uma espécie de crença em como os mortos vão comparecer nessa noite na casa onde viveram. Fica a dúvida se a ideia é dormirem na palha ou no quarto de hóspedes.


Sabemos que, ao longo do tempo, as tradições se vão perdendo ou vão sendo alteradas. Hoje, em algumas zonas de Portugal, é comum visitar os cemitérios no Natal e enfeitar as campas com azevinho. O objetivo é estabelecer uma ligação entre o enfeite das campas e o enfeite dos centros que adornam as mesas da consoada. Espero que ninguém se lembre de poupar na decoração de casa larapiando o azevinho das lápides.


Se tiverem interesse em explorar esta e outras tradições nossas, têm disponível o livro Festividades Cíclicas em Portugal, de Ernesto Veiga de Oliveira.