Os filmes [de terror] podem parecer mais fáceis, mas são muito mais técnicos — Entrevista a Luís Sequeira

Luís Sequeira cruzou-se com Guillermo del Toro quando trabalhava como figurinista no filme Mama (realizado pelo argentino Andy Muschietti). Desde então que tem trabalhado com o realizador mexicano nos seus projetos mais recentes, tendo sido inclusive nomeado para vários prémios, incluindo o Óscar de Melhor Guarda-Roupa em 2018 (pelo seu trabalho em The Shape of Water) e, mais recentemente, por Nightmare Alley, o film noir de del Toro, que estreou em Portugal em fevereiro de 2022.

Luís Sequeira ganhou o prémio do Costume Designers Guild em 2018 pelo seu trabalho no filme de Guillermo del Toro The Shape of Water.

Cresceu e vive em Toronto, mas confessa-se apaixonado por Portugal e pela luz de Lisboa. Nesta entrevista, falamos sobre a sua ligação ao nosso país, o seu processo criativo, projetos futuros e a vontade que tem de um dia poder filmar em Portugal.

Antes de mais, pode falar-nos um pouco da sua relação com Portugal?

A minha família é portuguesa. Nasci no Canadá, mas naturalizei-me português em 2005 porque queria ter nacionalidade portuguesa. Adoro o país, adoro lá ir. Normalmente, cada vez que acabo um trabalho, vou lá, mas com a pandemia tem sido muito difícil. Era para ter ido o ano passado, mas Portugal estava no meio de uma grande vaga [da pandemia] e não tive vontade de ir. Estou a pensar ir em abril e, se Deus quiser, vou lá estar. Adoro o país, adoro as pessoas, adoro a comida, adoro a praia, adoro Lisboa, Porto, as aldeias. É um pequeno país, mas é uma joia. Tem montes de áreas diferentes e sente-se [que se está] num país diferente em cada lugar que se vá.

 

Como é que foi o seu percurso profissional até chegar ao cinema? 

Eu fui para a escola para estudar moda. Como a minha mãe era modista em Portugal, era uma coisa dentro da [família]. Fiz um curso de Haute Couture (Alta Costura) e outro mais industrial, para lidar com empresas e patrões da indústria. [Entretanto], conheci umas pessoas que trabalhavam em filmes. E [apesar de ser] uma comunidade muito fechada, [que] me faz lembrar Portugal há uns anos, quando ainda era muito fechadinho, eles gostaram de mim e perguntaram-me se eu podia trabalhar nos filmes. Fui a umas entrevistas para ser assistente de produção de guarda-roupa. Tive de fazer essas funções durante 12 semanas até me poder candidatar ao sindicato e trabalhei em dois projetos. Quando terminei o segundo, já me queriam de volta no primeiro. Sempre tive a sorte de trabalhar muito. Comecei nessa posição e fiz todas as funções no departamento de guarda-roupa até chegar a figurinista. Depois de 15 anos a trabalhar como assistente de figurinista, tornei-me primeiro assistente de um dos maiores figurinistas dos Estados Unidos. Isso, por um lado, fez-me ter uma pausa [nas funções de] designer, mas levou-me para outro nível e penso que não chegaria onde cheguei sem essas funções. Por duas razões: primeira, porque vi como eles trabalhavam, como faziam as provas com os produtores, com os atores; a pesquisa que fazem para os figurinos. Foi uma aprendizagem enorme. E segunda, [porque] se tornaram amigos. Com isso, ajudaram-me a entrar no sindicato dos Estados Unidos. Deram-me contactos de outras pessoas lá e criei uma rede de contactos, não só aqui [no Canadá], como lá, nos Estados Unidos. Por isso, aconselho sempre aos mais jovens: «tudo bem, queres subir muito rápido, mas pensa que essa experiência é muito importante, é impagável; ir à escola não é o mesmo». É importante aprender com estas funções que nos dão e fazer o melhor com isso.

 

Como funciona o seu processo criativo?

A primeira coisa [que faço] é ler o guião. Porque, como digo sempre, se o guião é bom, as imagens «saltam» da página. O mundo, a roupa de toda a gente. Depois, escrevo os temas de que quero fazer a pesquisa, e depois é pesquisar. Pesquisar o tempo, a época, o mundo em que estamos, a moda, a moda antiga — a moda não desse tempo, mas a mais antiga, a moda mais para o futuro. Porque quero estar mesmo no ponto exato. Por exemplo, se estamos a fazer [roupas para] 1940, tenho muito cuidado em não incluir alguma coisa que seja de 1947 ou 1948, mas ao mesmo tempo pesquiso para trás, porque muita gente veste roupa antiga. Ainda mais se a personagem for mais velha. Se o seu auge tiver sido há dez anos, já não usa roupa da moda, e por isso tenho de ver como era a moda há dez, vinte anos. É como, possivelmente, algumas das nossas avós. Não seguem as últimas tendências da moda. Depois disso, é imprimir [toda essa pesquisa] nos livros de estilo que faço. Podem ser cinco livros enormes com várias imagens. E depois, começo a tirar as imagens que imaginei para cada personagem e passo-as para o papel. Fazemos um mood board para cada personagem; depois, para cada mundo. Por exemplo, [um] para os polícias, [outro para] os trabalhadores. Fazemos muitos mood boards. Coloco tudo na parede para podermos mostrar como o vamos fazer. Para comunicarmos com quem tem de fazer as compras, quem tem de fazer os cortes de tecido, o realizador. E até para que, quando os atores entrem na sala de provas, estejam lá todas as fotografias, uma visão do mundo que vamos criar. E eles adoram ver essas imagens e acabam por falar não só do papel deles, mas também de outras partes do filme.

 

E os realizadores dão-lhe liberdade criativa? Ou já têm as coisas bem definidas?

Depende do guião. Alguns guiões, em televisão, por exemplo, são mais específicos: um homem entra com um fato preto, etc. Mas nos filmes há mais abertura. As descrições dão mais abertura. Depois, há realizadores que se preocupam com todas as coisas, «não gosto dessa gravata, quero outra gravata». Outros deixam-nos ser mais criativos. Mas claro que, se há alguma coisa que se destaca e o realizador quer trocar, então claro, tem de se trocar, ou tem de se discutir isso. Por vezes, tenho de argumentar para ver se consigo mudar a ideia do realizador. Como eu conheço os desenhos todos, se escolho uma gravata assim, é porque já tenho uma gravata de outra cor, e se trocar esta vou [também] ter de trocar a outra, o que pode complicar as coisas. Outra coisa que eu digo sempre é que não existe mais ninguém na equipa que pense tanto na roupa como eu. É o meu trabalho, estou sempre a pensar em tudo, em todos os detalhes para fazer o melhor que posso. É um jogo, mas colaborativo, e por isso não tem de ser à minha maneira. Saí da moda porque era [um trabalho] muito solitário, [eu] no meu estúdio, só, a trabalhar. E eu gosto muito do convívio e do trabalho em equipa, isso faz sempre parte. Além disso, na minha equipa (os homens e mulheres que trabalham comigo), sabem coisas que eu verdadeiramente não sei. Eles vão trazer as suas ideias e experiências. E depois, juntos, é que fazemos o melhor. Quando eu achar que já sei tudo, é tempo de me reformar.

 

Como é trabalhar com o Guillermo del Toro?

É fantástico. É um realizador de primeira categoria, um amigo, um visionário. Também é uma pessoa que diz o que quer, mas que depois deixa os criativos fazerem o seu trabalho e apresentarem-lhe esse trabalho. E acho que é um equilíbrio fantástico, o de guiar [as pessoas] sem ofuscar o seu processo criativo.

 

E como chegou até ele?

Ele era produtor executivo de um filme chamado Mama. Eu estava numa prova [de roupa] com a Jessica Chastain e foi muito engraçado. Ela tinha uma peruca preta escura e ia fazer o papel de uma punk rocker. Estávamos na quarta prova, à espera para irmos mostrar ao realizador, abrimos a porta, e ele [Guillermo] estava lá com o realizador. Ele viu a roupa na atriz e disse: «Holy crap, adoro!». E foi assim, eu mesmo [me apresentei]: «olá, sou o Luís e sou o figurinista do seu filme». Depois disso, ele convidou-me para trabalhar na série The Strain, que durou três anos. Depois, convidou-me para trabalhar no The Shape of Water, e assim foi. Foram três anos a trabalhar arduamente na série, porque não é o mais fácil (fazer televisão), e era uma série muito complicada. Mas tem sido bom. Tem sido uma viagem fantástica.

 

Como é que a personagem influencia a roupa da mesma?

O Guillermo é um realizador muito interessante e diferente. Ele cria uma bibliografia das personagens. Escreve sobre a história delas, como é que chegaram a este ponto, do que é que gostam, do que é que não gostam, porque é que não gostam [de algo]. Por exemplo, porque é que determinada personagem não gosta de comer peixe? Porque a mãe a obrigava a comer peixe. Essas coisas todas dão bases para se começar a pensar nessa personagem e o que é que vai jogar com a roupa. Depois, como disse, penso na personalidade da personagem: se está na moda, se está atrasada [em relação à moda], se já está no futuro. Penso na posição socioeconómica: se são pobres, se são ricos. Porque se for um pobre que se tornou rico, o estilo será diferente de alguém que sempre pertenceu a uma família rica. E, mesmo que tenha sido rico e agora seja pobre, a roupa pode ser riquíssima, mas  é agora antiga. Isso tudo é tido em conta para dar diferenças às personagens.

E qual é a sua relação com o terror? É fã do género?

Isso é uma questão interessante. Toronto é uma cidade [onde], não sei porquê, se fazem muitos filmes de terror. Acabei por entrar [nesse género] por causa disso. Já fiz uma série durante uns anos, de comédia, com muitas mulheres, muita moda, etc. Mas tenho tido a sorte de ter muito trabalho, e muitos desses filmes têm sido de terror. Já fiz dois filmes do Stephen King que também são de terror e tem sido assim. Mas eu prefiro terror psicológico, em vez de terror com muito sangue e de fazer mal — esse não gosto. Mas terror sobre o que está no escuro, fantasmas — isso adoro.

 

É engraçado porque os últimos filmes em que trabalhou são quase todos de terror.

[Risos] Eu sei, eu sei! Mas a Mama é um fantasma; o Carrie é sobre pessoas a fazerem mal a outra pessoa, e ela vingar-se. Claro que tem espíritos e a mãe a pensar que ela é o Diabo, mas a origem é isso. O The Thing é ficção científica, não acho que seja mesmo terror. Agora um Saw, isso [já] é terror ao máximo, e já tenho dito a muita gente que não faço essa espécie de filmes. Porque só cortar e matar não é uma coisa de que eu goste.

 

E qual é a diferença quando se faz roupas para um filme desse género?

Sabe que é muito interessante. Um filme de terror depende da história. Por exemplo, no It – Chapter 2 , as personagens vestiram sempre a mesma roupa [durante o filme todo]. Todos tinham uma roupa principal e nós tivemos 50, 40 versões diferentes [da mesma roupa],  porque tivemos de gerir isso de acordo com o que acontecia no filme. Algo acontecia aqui, troca. Algo acontece lá, trocamos. E não filmamos do princípio ao fim; não é como teatro. Então podemos ir para a frente, depois para trás, depois para a frente. E nós tivemos 12 a 15 mudanças de roupa para causa e efeito. Um exemplo: alguém vomita sobre si, [tem de se ter] o antes e depois. E a seguir, o depois do depois: o vomitado fresco e o vomitado seco. Essas coisas são mais um puzzle lógico para nós, e é [também] por isso que precisamos de tanta quantidade da mesma roupa. Isso tudo representa muito trabalho. Porque tem de se pintar tudo, ou fazer [na roupa] qualquer coisa que esteja no guião. Os filmes [podem] parecer mais fáceis, mas são muito mais difíceis e técnicos.

 

E são vocês que fazem tudo?

Tudo, tudo. O sangue fresco, o sangue seco, terra molhada, cair de uma montanha abaixo e ver o que acontece, isso é tudo pensado. Muitas vezes, fazemos pesquisa e mood boards para comunicar ao realizador o que estou a pensar fazer, e [depois] eles dizem: sim, muito, mais, menos, etc., em vez de se fazer logo na roupa. Esses boards são muito importantes para a comunicação de tudo.

 

E é o Luís que desenha as roupas?

Não, se fizesse os desenhos para serem vistos por toda a gente, primeiro, não seriam tão bons e, para além do tempo, ficariam muito dispendiosos, porque há pessoas que podem fazer isso em muito menos tempo. Eu faço desenhos técnicos para comunicar à minha costureira, ou à minha modista. Isso posso fazer. Até mesmo [desenhos] para uma fábrica, posso fazê-los, mas desenhos das roupas tem mesmo de ser um artista.

 

Conhece filmes de terror portugueses?

[Risos] Não! Fico um pouco envergonhado, mas realmente tenho estado muito ocupado com o meu trabalho e com as minhas obrigações, porque sou membro da academia inglesa nos Estados Unidos e faço coisas lá e no sindicato dos figurinistas. [Risos] Estou a dançar à volta da pergunta, mas a realidade é que não tenho tido mesmo tempo para pesquisar, e para ver filmes portugueses no Canadá é complicado. A única forma que tenho é por ser membro de uma associação em Portugal em que, às vezes, tenho de ver filmes portugueses. Mas não há horas suficientes no dia, porque eu trabalho normalmente 12 horas, e muitas vezes trabalho 16 ou 18. O que é que sobra? Nada. Enfim. É por isso que também quero ir a Portugal, fazer uma pausa do trabalho, relaxar e ver alguns programas portugueses, e o que posso ver em relação ao cinema. Também gostava de falar com realizadores e pessoas ligadas ao cinema em Portugal, porque só conheço uns poucos. Gostava de ter mais contacto com pessoas que fazem o mesmo que eu faço.

 

E projetos futuros? Eu sei que está a trabalhar no Cabinet of Curiosities.

Acabámos [as rodagens do Cabinet of Curiosities] há duas semanas e decidi fazer uma pausa, porque tem sido muito tempo. Já falei com o meu agente para pesquisar [outros projetos] para julho, e depois veremos. Porque, se começarmos a procurar já, vamos encontrar algo já para março, e eu preciso de recarregar baterias. Por isso, estou disponível agora. [Risos]

 

E pode revelar alguma coisa sobre o Cabinet of Curiosities?

Posso. O Cabinet of Curiosities é uma antologia ao estilo de Black Mirror, com diferentes épocas, diferentes mundos, diferentes visões, diferentes realizadores. [E os episódios são] baseados em temas de que o Guillermo [del Toro] gosta muito. Temos atores fantásticos de quem penso que as pessoas vão gostar, e penso que é interessante porque todos são diferentes. E passa-se em épocas diferentes: 1910, 1920, 1950, 1970, anos 80, 50. Para nós, representa muito trabalho, porque entram os anos 50, saem os 70; estão a voltar os 70 e temos de ir buscar os 90. Tem sido um trabalho muito árduo e é também por isso que preciso de uma pausa.

 

Mas teria interesse em fazer um projeto seu? Com uma ideia sua?

Eu já tenho algumas pessoas amigas que conhecem o meu trabalho e dizem que eu devia apostar em ser production designer ou em produção, [ser] produtor. Porque eu tenho uma visão em que não é só [escolher] o tecido, vejo sempre o projeto todo. Eles acham que tenho bom gosto e que conseguiria organizar um projeto desses, por conseguir equilibrar muitas coisas diferentes. A minha equipa pode ser de 50 pessoas, todas com diferentes necessidades, e era algo que gostava de fazer. Tenho uns poucos livros que adorava adaptar, e um deles passa-se mesmo em Portugal, nos anos 2000 e no tempo da guerra, durante o Salazarismo. Porque também acho que a maioria das pessoas não sabe que Portugal é um sítio onde se podiam filmar muitas coisas. Querem [filmar] na montanha, há montanhas. Querem fazer o mesmo numa praia, há praias. Querem palmeiras, vão ao Sul. Querem chuva, vão ao Porto. Existe o moderno e existe o antigo. Então, podia fazer-se um filme de época [usando estes cenários] muito facilmente. Eu estou sempre a falar de Portugal para ver se um dos meus amigos produtores quer ir [aí], para eu trabalhar em Portugal. Lisboa é uma cidade muito bonita, a luz [de Lisboa] não existe noutras cidades, reflete no mar. É uma cidade com muita luz. Estou sempre a falar bem de Portugal para incentivar as pessoas a irem!

 

As regras já mudaram um bocadinho em Portugal, e agora já é possível, com a Netflix, por exemplo, obter parte do financiamento através da plataforma de streaming. Pode ser que a indústria comece a crescer um pouco por cá.

Era bom! Eu sempre senti que a indústria do cinema aí era muito fechada. Quando eu ia lá antigamente, dizia a toda a gente que adoraria trabalhar em Portugal, mas achava tudo muito fechado. Por isso, fico contente por haver agora essa abertura, por estar a abrir mais. Isso é fantástico.

 

E estaria disponível para trabalhar num filme em Portugal?

Sim, já o disse muitas vezes. Chamem-me! [Risos].