O autor Francisco Horta conta-nos o que o atrai na escrita de terror

«Não é preciso seres o melhor do mundo, não é preciso seres o melhor da tua aldeia, basta que aquilo que faças seja bem feito e que algumas pessoas gostem.»

Estreou-se no Sangue Novo, em 2021, com o conto «A Tradição». Em 2022, integra mais uma antologia (Sangue, editada pela Trebaruna) com o conto «A Capoeira». O seu estilo particular de escrita pode ou não ter nascido na primeira oficina de Escrever Terror, mas ali angariou sem dúvida todas as ferramentas que lhe permitiram desenvolver os textos que agora facilmente reconhecemos como seus. 

De Sandra Henriques

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Como e quando é que descobres o teu amor pelo género, quando é que te tornas fã de terror?

Acho que cheguei lá pelo medo. Não faço ideia de quando é que vi o primeiro filme de terror, não me lembro. Lembro-me de estar em casa e de o meu irmão estar a ver o ET e na altura ficar aterrorizado com o filme. Ainda não consegui voltar a ver o ET, porque aquela figura aparecer no quarto de uma pessoa… Eu era pequeno e tive demasiado medo. Ainda por cima, quando eles viram o filme, já era de noite, portanto aquela noite não foi dormida e o dia seguinte foi a pensar naquele bicho que podia aparecer em casa de alguém! A minha ligação [ao terror] sempre teve base no medo que sentia ao ver filmes, e, como tenho um irmão 9 anos mais velho, ele consumia mais coisas de terror do que eu, obviamente. Mas eu acabava por ver um bocadinho. Durante o dia, é ótimo ver um filme de terror. O pior é à noite, quando vais ter de dormir sozinho num quarto que está escuro. Eu tinha um pesadelo quando era pequeno, de um peso que caía em cima da minha mão como se a agarrasse, e era horrível. E tinha alguns sonhos em que me puxavam os lençóis e os cobertores e de ficar destapado e vulnerável aos monstros que só aparecem quando estás destapado. [risos] No fundo, acho que era por causa disso que gostava de terror. Durante o dia, podias ver alguma coisa que te metesse medo e, à noite, tinhas de te esconder desse pensamento.

Mas lidas bem com isso. Não te importas de te colocar numa situação em que sabes que vais sentir medo.

Fazia uma coisa quando era pequeno, quando estava com os meus pais a ver televisão, que era espreitar para o corredor escuro para ver se conseguia ver alguma coisa ao fundo dele. E muitas vezes, metia na cabeça que via qualquer coisa, porque era interessante. E depois, à noite, quando estás sozinho [pensas]: «e se aquela coisa continua a estar ali?» Tinha muito isso de imaginar coisas que pudessem existir enquanto estás em segurança. Onde é que se esconderiam? Estariam debaixo da cama, debaixo do armário, atrás de uma porta? O bom é que isso se repetia no dia seguinte. Durante o dia, voltava a pensar na mesma coisa, como se estivesse a picar o medo, a chamá-lo, e isso continuava sempre, era o combustível.

É por isso que depois nos perguntam se escrever terror afeta o nosso lado psicológico…

Eu tinha uma brincadeira com um amigo em que, durante o dia, íamos ao quintal procurar por coisas que não estavam lá ou que tinham desaparecido no dia anterior. E obviamente que era tudo inventado, mas, a partir de certa altura, já não percebias se o outro estava a falar a verdade ou se estava a inventar, e aquilo dava-te uma espécie de entusiasmo para ir à procura. E era uma brincadeira engraçada. Depois, à noite, não era tão engraçado, lá está. Mas, durante o dia, precisava de alimentar isso.

Já escrevias ficção antes do curso Escrever Terror?

Não escrevia ficção. Já tinha escrito contos e tinha publicado num site onde alguém comentou que tinha gostado. O texto estava horrível, não tinha pontuação como deve ser, tinha erros ortográficos, mas acho que [a pessoa tinha gostado] pela ideia, e o reforço de ter alguém a gostar [levou-me a pensar] que devia continuar, devia fazer mais, e depois escrevi algumas coisas. Gostava muito do surrealismo, porque não tinha de fazer sentido, não tinha de estar a respeitar nada, e cheguei a fazer algumas coisas sobre isso, mas deitei tudo fora. Acho que tive um problema com a literatura. Primeiro, foi perceber o que era a literatura. Quando andava no secundário, achava que a literatura eram histórias de amor, romances, e nunca me interessei. Depois, descobri que não era só isso, que havia muito mais para lá disso. Estava completamente enganado em relação à literatura. Quando fui para a faculdade, comecei a ter contacto com obras mais conceituadas, vistas como grandes obras da literatura, e achei: «nunca na vida vou fazer nada disto, portanto não vale a pena continuar a escrever». Na minha cabeça, tudo aquilo que eu escrevesse tinha de ser melhor do que tudo o que já tinha sido escrito, que é uma ideia completamente errada. Tu tens de fazer aquilo que gostas de fazer, tens de melhorar aquilo que gostas de fazer, mas não tens de almejar ser o Prémio Nobel. Até porque, se toda a gente fizesse isso, não havia Prémio Nobel. No secundário, escrevi algumas coisas que podiam ser relacionadas com terror, mas sem grande profundidade, uma coisa mais visual, e curiosamente só tive uma professora de Português que achava piada [aos textos] e que me dava boas notas. Todas as outras me davam más notas por causa do tema, não pela forma como eu escrevia.

Se a tua filha Matilde, um dia, quiser escrever terror, vais ser o primeiro a apoiá-la?

Vou ser o primeiro, claro. E os livros de literatura infantil abordam muito o medo, não fazia ideia. Um dos livros favoritos dela é o Cuquedo. E é muito engraçado.

E como é que chegaste ao curso de Escrever Terror?

Muito fácil. Cheguei a uma altura em que me perguntei: «o que é que eu gostava mesmo de fazer?». E havia duas soluções, ou carpinteiro [risos] ou escrever. Sempre quis escrever. Porque não? O que é que eu tenho de fazer para saber escrever se não sei? Porque acho que a ideia é procurar quem te ajude a conseguir fazer. Foi por isso que cheguei à Escrever Escrever. Por acaso, encontrei o curso de Escrever Terror, porque estava à procura de qualquer coisa sobre escrita criativa, e pensei: é mesmo isto. Depois, fiz o segundo nível e agora estou à espera que comece o terceiro. Não sei se depois a tendência será aparecerem mais ou menos pessoas [para fazer o curso], acredito que haja muito mais gente interessada no terror. Depende é se queres ou não tirar o curso.

O que é que achavas que ia acontecer com o curso, além das ferramentas para continuares a escrever?

Na altura, não fazia ideia se havia terror em português ou não. Também não tinha procurado, mas porque acho que existe muito conteúdo estrangeiro. Acho que a Fábrica vai ajudar a contornar isso. E a minha ideia de literatura portuguesa [no geral] era uma literatura muito pesada, de gente que já tinha morrido. Então, fui investigar quem era o Pedro [Lucas Martins] e descobri que havia prémios sobre ficção especulativa em Portugal. Quando estava a fazer o curso, achei que não era assim grande coisa, porque a escrita não fluía nas aulas. Gostava muito das coisas que a Marta [Nazaré], a Maria [Varanda] e a Patrícia [Sá] escreviam e achava que não conseguia escrever assim. Durante o curso, com essa pressão, sentia-me constrangido. Eu preciso de tempo e de espaço e de estar sossegado para o texto sair, pelo menos de forma a que me agrade. Portanto, achei que não ia fazer grandes coisas, mas já tinha as ferramentas para mais tarde poder fazer. Foi um bocadinho ao acaso.

Depois, chega o convite para a antologia Sangue Novo. Qual foi a tua reação?

[Reagi com] entusiasmo. Primeiro, porque não tinha escrito mais nada. Fora do curso, os textos ficavam nos primeiros parágrafos. Quando o convite [para o Sangue Novo] surgiu, pensei: vou ter mesmo de acabar um conto.

E como é que está o teu processo criativo, agora que tens as ferramentas e publicaste um conto?

Escrevo todos os dias. Às vezes, é só uma frase, mas é isso que faz com que eu não abandone o texto e, se calhar, passada uma semana, apago tudo o que escrevi e escrevo outra vez.

Isso é uma excelente rotina, porque as pessoas romantizam muito o que é ser escritor. Sentes que já tens uma assinatura como autor?

Quando estava a escrever o texto para o concurso Ataegina, estava a afastar-me um bocadinho daquilo que costumo escrever, e estava a sentir-me desconfortável. Os meus textos «normais» têm sempre aquele traço um bocado aberrante. Aquele não tinha, não fugiu para aí, mas acho que, mesmo assim, iam conseguir identificá-lo como um texto meu. Eu não penso, no início: «esta história devia acabar desta forma horrorosa». Às vezes, foge para ali. Às vezes, sei como é que vai acabar; às vezes, não. E está muito relacionado com a minha perceção de achar que as coisas vão correr mal e acabar pior ainda. Acho que, na vida, as coisas em princípio nunca acabam bem, porque acabam com a morte, e por isso as minhas histórias normalmente não acabam bem.

Mas é esse o choque que queres provocar?

Não procuro chocar, mas imagino que vá chocar, e os meus textos raramente têm aquilo que é a minha perspetiva enquanto pessoa do mundo. São personagens que estão ali. Eu procuro sempre manter-me alheio — e eu sei que é impossível conseguires fazer isso sempre — daquilo que é a opinião da personagem e do narrador. Procuro sempre afastar a minha opinião do texto e dar vida às próprias personagens, serem elas a fazer o que acham que devem fazer, por acharem que estão certas ou erradas. O que me assusta é aquilo poder transparecer para a realidade (e tens realidades de pessoas que são horríveis) e as pessoas acharem que aquilo nem é mau. Isso, para mim, é assustador.

E eu acho que o efeito murro no estômago vem daí, por serem personagens que, apesar de tudo, podiam perfeitamente existir na vida real. 

Acho que disse isso na apresentação do Sangue Novo. Isso atrai-me bastante, tentar explorar aquilo que não aconteceu, mas que podia ter acontecido. E por isso é que, por exemplo na ficção científica, eu não sinto tanto o apelo. Acho que está mais distante, embora não necessariamente, porque bastante daquilo que vês hoje em dia apareceu na literatura e no cinema há muitos anos, e, na altura, era impensável que isso viesse a ser realidade. Mas em relação ao terror é isso, é aquilo que não aconteceu, mas podia perfeitamente ter acontecido. Outra coisa que [sempre] me atraiu é a vulnerabilidade das pessoas. Falo muito de crianças nos textos porque acho que muitas das vezes — seja na escola ou na vida familiar — não prestamos muita atenção às crianças. E muitas das vezes, quando não estamos a ver, elas fazem coisas que não são bem aquilo que deviam estar a fazer. E isso, esses intervalos em que não estamos a ver, acabam por ser, para mim, uma coisa fixe de explorar — o que aquela criança podia ter feito ali, naquele piscar de olho que não vimos. As pessoas vão para sítios que não deviam ir.

Apesar de todos os alertas.

Mas também é a questão de «eu tenho de ir ver, porque não acredito naquilo que me estás a dizer, tenho de ir ver se é mesmo assim». E acho que isso é normal.

Antevês mais antologias com novos autores de terror em português?

Sim, claro. Acho que é importante porque sentimos que não estamos a escrever só para a gaveta. Muitas vezes, só temos medo de mostrar aquilo que estamos a fazer. A não ser que tenhas um ego enorme e aches que tudo o que fazes é excelente, precisas de ter alguém que te diga: «olha, isto é engraçado». Não é preciso seres o melhor do mundo, não é preciso seres o melhor da tua aldeia, basta que aquilo que faças seja bem feito e que algumas pessoas gostem. Não acredito que todas as pessoas que compraram o livro e leram o meu conto tenham gostado, mas sei que houve pessoas que gostaram. Acho que isso é importante para sentires confiança para fazeres mais, e enviares para outros concursos, e descobrires que ali também gostaram, e isso vai-te dando reforço. Serve também para não estares dependente de uma editora, porque o gosto é sempre subjetivo. [Numa antologia como esta], estás a dar oportunidade àquela pessoa de ser lida por muitas pessoas.