«O terror não é para meninas»

De Sandra Henriques

 

Está espalhado por (quase) todas as minhas biografias desde que comecei a escrever (e a publicar) terror: tinha 10 anos quando vi o meu primeiro filme do género, o Halloween, com o meu pai, às escondidas da minha mãe.

Ele era fã de «coisas de assustar» (filme de terror sem jump scares eram uma desilusão; das poucas coisas em que discordávamos) e tinha um carinho especial pelo Hitchcock e pela Twilight Zone.

O primeiro filme que vi sozinha, mesmo que provavelmente ainda não tivesse idade para isso, foi A Mosca, do David Cronenberg. Daí para a frente, houve muitos mais filmes, obviamente.


Lá em casa, o terror não só era bem-vindo, como não era um bicho-de-sete-cabeças. E não era uma coisa de meninos ou de meninas.


Cresci nessa doce ilusão até à minha adolescência, quando passei da casa dos pais para um quarto partilhado numa residência de estudantes, onde tinha de lutar todos os fins de semana para que o «filme do dia», que íamos buscar ao videoclube, não fosse uma comédia romântica ou um dramalhão. Às vezes, ganhava, mas conto as minhas vitórias pelos dedos de uma mão.

Faltam aqui, no entanto, dois pormenores: o primeiro é que essa residência de estudantes era num convento (um piso acima da clausura, envolta em todo aquele mistério e coisas que se passavam à porta fechada e que identificarei sempre com o ambiente do Suspiria (1977) — faz sentido que tivesse descoberto recentemente que o argumento é de uma mulher, Daria Nicolodi); o segundo é que, entre as refeições, lições morais e tentativas de conversão (com a ligeireza de uma reunião da Tupperware), as freiras residentes se preocupavam com a natureza desencaminhadora dos filmes de terror.


«O terror não é para meninas», disse-me um dia a Madre Superiora, depois de confiscar uma das cassetes VHS do videoclube.


Retaliei? Claro. Sozinha? Não. Porque mesmo que, entre 30 miúdas, eu fosse a única fã de terror, «mexeu com uma, mexeu com todas». Quando alugávamos filmes de terror, trocávamos as cassetes de caixa (a censura julgava os filmes pela capa, e ainda bem). O rácio de filmes de terror para filmes lamechas continuava a ser baixo, mas (caso ainda não soubessem) estou mais tranquila a desmistificar o género do que a evangelizar.

Entre esse episódio e os meus 40 anos, fui consumindo tudo o que encontrava, sem ligar muito ao género do autor, e só recentemente me apercebi de que todas as minhas referências do terror tinham sido escritas ou realizadas por homens. Porque é que nunca procurei ativamente terror feito por mulheres? Porque, como consumidora, não andava à procura de nada em particular (sempre consumi tudo o que apanhava de terror, sobretudo no que diz respeito aos filmes; nos livros, era cegamente fiel ao Stephen King e raramente me aventurava para fora desse universo), logo, não questionava o que me era oferecido. E se só vemos o que nos é oferecido, assumimos que é o que há.

O caso mudou de figura quando comecei a escrever ficção e assumi que o terror é o meu género de eleição. Estava, na altura, a fazer uma formação online em marketing para artistas freelance e, numa turma de quase 40 escritores, talvez dois ou três de nós eram potenciais autores de terror. A única mulher era eu.

Não tenho por hábito achar que sou a última bolacha do pacote; tentei, por isso, explorar terror feito por mulheres, além da Mary Shelley e da Anne Rice. Encontrei a Shirley Jackson e um ou outro conto de outras autoras (considero The Yellow Wallpaper, da Charlotte Perkins Gilman, como um dos meus encontros acidentais de 2021). Em Portugal? Vi-me com bússola, mas sem mapa.


Começar uma oficina de escrita de terror numa turma só de mulheres e partilhar com elas (e outras seis) a publicação de uma antologia de 15 novos autores de terror em português foi um marco.


Sinto que o terror ainda é visto como «coisa de homens». Que, quando aparece muita coisa dentro do género feita por mulheres, se pensa que é para preencher quotas do politicamente correto e não por mérito. Que todo o terror feito por mulheres tem de ter uma mensagem subjacente de empoderamento (às vezes, sim; às vezes, não; às vezes, o monstro dentro do armário é só mesmo um monstro dentro do armário). Como em qualquer outra área em que ainda parecemos poucas, há esta tendência de nos esforçarmos para mostrar que temos algo a dizer, com medo de perder o lugar.

Se os autores de terror já são alvo de maior escrutínio do que os criadores de outros géneros, das mulheres ainda se exige mais e, sobretudo, que se encaixem naquilo que se acha que é «bom» terror. As autoras de terror podiam assinar todos os seus textos com pseudónimos masculinos, com nomes próprios escondidos atrás de iniciais ou diminutivos? Podiam. Mas o caminho não é por aí. O caminho (agora com mapa) é pela divulgação, pela representatividade e pela comunidade. Do terror português, no geral. Das mulheres nele, em particular.