Robert W. Chambers, «The Repairer of Reputations»
Narração de Anthony D. P. Mann. Banda sonora de Slasher Film Festival Strategy e Chris Bozzone. Arte gráfica: Matt Jaffe.
Uma obra de qualidade para ouvirmos o que nunca lemos. Ou escutarmos um conto familiar contado como nunca o ouvimos.
Um dos predicados que levou The Repairer of Reputations (O Reparador de Reputações, em português) a ser considerado, no final do século XIX, um exemplo de literatura experimental, foi o facto de Robert W. Chambers, o seu autor, quebrar uma das regras fundamentais dos contos. Na sua narrativa, contada na primeira pessoa pela personagem principal Hildred Castaigne, quem lê é convidado a duvidar de todos os detalhes apresentados, quebrando-se assim o contrato básico entre o autor e o leitor. Mas não é apenas esse detalhe que faz desta obra um conto clássico do horror americano de finais do século XIX. O enredo estranho, futurista (a história passa-se numa Nova Iorque 20 anos depois do ano da escrita do conto), levemente distópico e dramático da obra é incrivelmente denso e bem construído, mesmo para os parâmetros da literatura contemporânea.
É esta a obra que a Cadabra Records convidou Anthony D. P. Mann a narrar. Ao longo da sua carreira como ator, o canadiano interpretou algumas personagens icónicas do imaginário popular, como o Conde Drácula (Terror of Dracula, 2012), o Fantasma da Ópera (Phantom of the Opera, 2014), Sherlock Holmes (Sherlock Holmes – O Jogo de Sombras, 2011) e Ebenezer Scrooge (A Christmas Carol, 2015). Mas é como locutor freelance que concentra atualmente a sua atividade, trabalhando em proximidade com a Cadabra e na sua própria empresa de audiodramas, a Bleak December Inc. E, logo na primeira audição de The Repairer of Reputations, revela-se a escolha perfeita.
Mann não só goza de uma dicção perfeita como empresta as emoções certas, e nas doses certas, a cada parte do conto.
Não querendo estragar a surpresa de quem ainda não o leu, digamos apenas que o narrador passa por um turbilhão de estados de espírito que quase se atropelam, muito ao estilo das personagens de H. P. Lovecraft. Anthony D.P. Mann não apenas domina a arte de lhes dar voz como a coroa com uma respiração perfeita, uma entoação sem mácula e toda uma leitura que nos faz, de facto, acreditar que estamos a ouvir Hildred Castaigne falar na primeira pessoa.
Com esta monumental atuação gravada, não restava muito espaço a Chris Bozzone e à banda The Slasher Film Festival Strategy para brilharem, e o compositor parece ter percebido isso.
Escreveu uma peça discreta que adensa a narração suavemente, só se dando por ela quando os movimentos mudam. Mas o efeito é pujante: The Repairer of Reputations é invulgarmente claustrofóbico, com um omnipresente sentimento de iminente desgraça, muito por causa do binómio narração/banda sonora, embora o primeiro apele aos sentidos de uma forma imponente e o segundo seja a base circunspecta, mas não diminuta, onde tudo assenta. A The Slasher Film Festival Strategy, com mais de 25 anos a compor e gravar música industrial, ambiental, drone e power electronics, não parece ter apresentado qualquer problema em executar a banda sonora de Bozzone.
Com prestações magníficas de vários dos seus colaboradores habituais (incluindo Matt Jaffe, que criou uma capa e layout do disco perfeitamente enquadrados com a história), restava à Cadabra Records fazer aquilo que faz melhor: uma produção luxuosa.
The Repairer of Reputations é prensado em LP duplo de vinil amarelo/transparente de 150 gramas, em capa gatefold, com notas escritas por S. T. Joshi (crítico literário norte-americano especializado na obra de H. P. Lovecraft e outros autores de horror gótico).
Sendo uma edição unicamente em vinil (não há CD nem está presente em qualquer plataforma de streaming), o caráter «quente» que caracteriza o formato áudio escolhido é mais um bónus que se acrescenta a todo o puzzle de pormenores que faz desta obra a resposta perfeita a quem se pergunta «porquê ter um disco com um conto em vez de ter o livro?».
A resposta é simples: uma coisa não invalida a outra. Se, por um lado, podemos ler O Rei de Amarelo (coleção de contos de Robert W. Chambers de que «O Reparador de Reputações» faz parte) para uma experiência mais lenta e pessoal, o disco, por outro lado, pode despertar outro tipo de sensações, mais viscerais, imediatas e imprevisíveis, e revelar pormenores e camadas de descobertas a cada audição. Se não acreditam, experimentem ouvi-lo de dia, distraidamente, enquanto fazem uma qualquer tarefa doméstica, e depois à noite, com atenção, com auscultadores e um generoso volume de som. É provável que voltem a ele mais vezes do que disseram «audiobook em disco de vinil» ao longo da vossa vida.
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Fernando Reis
Desde que, em 1985, viu O Monstro da Lagoa Negra na RTP, numa TV a preto e branco, Fernando Reis apaixonou-se pelo terror. Uma paixão que o acompanhou ao longo da vida, mesmo quando, na década de 90, enveredou pela indústria musical, escrevendo para revistas como a Riff, a LOUD! ou a Metal Hammer Portugal. Na Fábrica do Terror, tem oportunidade de juntar ambas as paixões. A sua vida pode resumir-se a um poema: «Alone», de Edgar Allan Poe.