Entrevista a Eiji Uchida, realizador de «Life of Mariko in Kabukicho»

Prémio do Público no Fantasporto 2023

«Penso que a imagem que têm do Japão contemporâneo já está mudada e desatualizada, e este [filme] pode ser uma visão mais próxima e real do que resultou dessa mudança.»

Do Japão, habitualmente esperamos filmes que distorçam os limites da realidade, deixando o espectador na dúvida se o que vemos no grande ecrã é uma paródia ou uma representação do real.

Foi também disto que falámos com Eiji Uchida, o realizador que trouxe Life of Mariko in Kabukicho à 43.ª edição do Fantasporto.

 

Sandra Henriques: O que nos pode dizer sobre o filme Life of Mariko in Kabukicho?

Eu diria que é um filme ao estilo anos 80 de categoria B, que mistura os extraterrestres com o Japão, nomeadamente a zona de Shinjuku em Tóquio. [risos] Penso que a imagem que têm do Japão contemporâneo já está mudada e desatualizada, e este [filme] pode ser uma visão mais próxima e real do que resultou dessa mudança.

 

Cláudio Redondo: Daí a cidade parecer quase uma personagem em si? Para mostrar essa realidade que é mais diferente daquela que estamos habituados a ver?

Sim, sim, tem razão. Não digo Tóquio, necessariamente, mas especificamente a zona de Shinjuku, [que] é um sítio muito especial e peculiar. Portanto, eu diria que sim, Shinjuku é como se fosse uma personagem, com uma personalidade [própria].

 

CR: Quais foram as inspirações para este filme? Porque senti que a história encaixaria bem em vários formatos.

Uma [das inspirações] é certamente os filmes americanos de categoria B. Por outro lado, assim como também já aconteceu no meu filme anterior, ter a cidade de Shinjuku como o cenário já tem vindo a ser algo muito comum nos meus trabalhos, [como o] que fiz há uns três, quatro anos, Naked Director (uma série da Netflix). Uma boa parte desta série também se passa em Shinjuku.

 

CR: Como há várias personagens com diferentes histórias, inspirou-se num formato mais televisivo, episódico?

Este filme tem dois realizadores. Portanto, este projeto nasceu como sendo um filme construído por dois realizadores, em que cada um ia trabalhando nos seus episódios. Não quer dizer que, de hoje em diante, não possa haver outros filmes semelhantes, umas sequelas do mesmo género, que tenham Shinjuku como cenário, mas realizados por outros realizadores.

 

SH: Quando são dois realizadores, como é fazer um filme com duas visões, sejam elas diferentes ou não?

É muito difícil. [risos] Este estilo de filme, do tipo omnibus film (antologia), é algo muito difícil em termos de comercialização no Japão. Normalmente, neste estilo de filmes, são dados vários temas, cada realizador faz um episódio, e depois «colam». Mas aqui não. Forçaram-nos um pouco a este tema principal para não fugirmos muito [risos].

 

SH: No final da exibição do Fantasporto, o Life of Mariko in Kabukicho foi muito aplaudido. Como é que tem sido a sua reação à aceitação deste filme pelo público? 

Confesso que, no início, estava com muito medo de ter a sala vazia e não ter ninguém a ver o filme. [risos] Quando entrei, vi tanta gente que fiquei logo aliviado. [risos] O povo português é muito amigável e carinhoso, e pude assistir à estreia muito descontraído.

 

SH: Aproveitando que o Taro Yabe está aqui connosco, pergunto-lhe como é que foi trabalhar neste filme?

Taro Yabe: Eu conheci o realizador há muitos anos, começámos a trabalhar juntos há volta de 10 anos, mais ou menos, quando comecei a aparecer como convidado nos filmes.

Eiji Uchida: O primeiro papel dele foi de serial killer. [risos]

TY: Sim, é verdade… O meu primeiro papel foi de serial killer sem-abrigo. [risos] Sou comediante, então normalmente ele pede-me para encarnar uma personagem que seja muito diferente daquilo que faço habitualmente, mas desta vez não foi o caso. Eu interpretei a minha personagem, que sou eu próprio.

EU:  A agência onde ele está agregado é a maior agência do Japão e fica precisamente em Shinjuku.

TY: O edifício [da minha agência] foi originalmente uma escola primária, depois foi transformado numa junta de freguesia, e depois passou a ser a agência. Só para terem uma ideia desta transformação muito rápida da cidade.

EU:  É mesmo incompreensível. [risos]

TY: Essa faceta estranha e incompreensível também é uma característica de Shinjuku, o que é interessante, e também foi um pouco a pensar no público japonês, que já conhece bem esta característica da cidade. Era algo que queríamos transmitir no filme. É muito realista desse ponto de vista, mas atenção que eu não uso aquele penteado normalmente. Senti-me desconfortável com aquilo, é muito estranho. [risos]

EU: Alguma vez foram a Tóquio?

SH e CR: Não, ainda não, infelizmente.

EU: É uma cidade maravilhosa, mas muito estranha, onde há crime, cultura, mas tem também esta juventude triste que, por alguma razão, não tem onde ficar, e então acaba por se juntar lá. É mesmo uma cidade estranha.

 

CR: As personagens do filme são todas meio loucas, meio extravagantes, mas ao mesmo tempo parece que estão todas num ambiente de normalidade. 

É mesmo isso. [risos] Aquilo faz parte do dia-a-dia. Tirando o extraterrestre [risos], o resto é tudo o normal da cidade. Há 20 anos, a lei no Japão mudou e começou a ser mais rigorosa com a yakuza, que é uma das organizações criminosas mais poderosas. Isto acaba por ser um contrassenso, mas, enquanto não havia essa lei, a cidade estava controlada, porque existiam regras da yakuza. A partir do momento em que essa lei entrou em vigor, retirou força à yakuza, e a cidade começou a ficar descontrolada, com outro tipo de gangues underground. Então, neste momento, tornou-se numa cidade pouco segura.

 

SH: E isso nota-se bem no filme, também. 

Nós temos um personagem que era membro da yakuza e que, já não tem trabalho.. Assim como ele, estes [antigos membros da yakuza] têm de fazer part-times ou então roubar. Vivem com dificuldades financeiras. E isto é uma realidade também. Porque, se disserem que são yakuza, são presos. Basta abrirem uma conta no banco e vão logo presos. Por um lado, temos a realidade da yakuza atual, mas, por outro, temos a cultura de acompanhantes que é muito própria da cultura japonesa. Penso que, no filme, acabo por retratar uma realidade muito atual e muito presente, acompanhada de um extraterrestre. [risos] Aquele episódio da rapariga que colocou as algemas e incendiou a casa também foi um acontecimento verídico.

 

CR: A personagem que faz de ninja dá a sensação de ser a representação de uma forma de resistir e de não perder aquilo que era o Japão, tentar manter as tradições, mas que já não encaixam. Era esse o objetivo?

Essa personagem tem também um modelo [real]. Existem muitos ninjas autoproclamados no Japão, e Shinjuku tem esses ginásios de ninja. Até mesmo para nós, que somos japoneses, existem coisas um bocado insólitas. [risos]

 

SH: Este personagem até dizia que vinha de uma linhagem muito antiga de ninjas.

É inspirado numa pessoa que eu conheço, a supervisora do projeto. Ela é descendente de uma família de ninjas. É uma pessoa transgénero, nasceu como homem e recebeu a educação de ninja em criança pelo pai. É uma história real e fiquei muito surpreendido quando soube. Acabou por servir de inspiração.

 

SH: A cena de violência doméstica, entre o pai e a mãe de Mariko, é particularmente chocante. Como foi filmá-la?

Nas filmagens, fomos bastante descontraídos, mas temos uma criança no elenco e tivemos todo o cuidado em termos de sensibilidade. No entanto, no Japão, a violência doméstica contra as crianças aumentou muito durante a pandemia de COVID, e, como não adianta mentirmos sobre isso, foi filmado de forma bastante real. Muitos espectadores podem vir a sentir-se incomodados quando assistirem a esta cena, mas ela é real, presente, e por isso é mostrada.

 

SH: Quando a rapariga vítima de violência doméstica mata o pai, os jornais noticiam a criança-herói que mata um antigo membro da yakuza e não o pai que é o abusador. Porque é que a imprensa daria mais importância a uma coisa do que a outra, ou não focariam ambos?

Essa história vai ao encontro da tal mudança de lei que houve há 20 anos. Ela matar o pai coincide precisamente com essa altura. Era uma altura em que os meios de comunicação davam mais destaque ao facto de ser um membro da yakuza do que a outros assuntos. Ainda hoje, os meios de comunicação no Japão não abordam muito esta temática de maus-tratos das crianças.

 

SH: Porque ainda encaram o tema como uma coisa privada?

Sim. Antigamente o mundo das crianças era um santuário, algo sagrado, portanto não se expunha, não se falava, tentava manter-se tudo em privado. Mas, no Japão, só temos 8 ou 80. Hoje, é totalmente o oposto. Já querem que mostrem a cara, que assumam as responsabilidades. É algo que, pessoalmente, não consigo entender.

 

SH: Queremos saber mais sobre projetos futuros. O que é que está na calha?

Este filme vai estrear em junho, no Japão.  Na semana passada, estivemos em filmagens para o próximo filme, que se vai passar também em Shinjuku. Este não vai ser uma comédia, vai ser um filme extremamente sério. A personagem principal é um assistente de realizador, e temos planos para que este filme possa ir a vários festivais de cinema, por isso era bom que pudéssemos voltar ao Porto para vocês poderem vê-lo. Mas não vai haver nenhuma cena que dê para rir! [risos] E não vai ter extraterrestres. [risos]

 

CR: Shinjuku vai ser sempre uma constante nos seus filmes? Uma espécie de personagem principal deste universo?

Boa pergunta. [risos] Agora, pensando nisso, realmente podia ter ido para outras zonas de Tóquio, mas Shinjuku acaba por ter tanto de muito bom como de muito mau, e pode ser uma componente-base naquilo que faço. Mas, neste momento, [a cidade] está cheia de turistas. [risos]