Entrevista à família Pinto

Argumentistas, realizadores e protagonistas de Gosto de Te Ver Dormir.

«Eu não queria ser um cadáver, eu queria ser o assassino.»

 

O realizador Hugo Pinto estreou a página de curtas portuguesas da Fábrica do Terror, com O Intruso, Espelho Meu e A Escritora. Em 2023, para distrair os miúdos, ele e a mulher, Rute Simões, decidiram transformar as férias de família no cenário sangrento da microcurta Gosto de Te Ver Dormir — uma espécie de prequela para a curta de 2024 com o mesmo título. Neste novo filme, a competir no Fantasporto 2025 para o Prémio Cinema Português e Melhor Curta de Cinema Fantástico, atam-se pontas soltas, apela-se ao coração com excertos de family footage e assiste-se ao cameo semi-oficial de Matilda, a gata lá de casa. 

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Sandra Henriques

Olá, família Pinto! Como os miúdos têm de se ir embora, começo por eles. Qual de vocês é que não volta a fazer um filme com os vossos pais?

Vasco Pinto: Eu faço! 

Rute Simões: Ainda hoje estavas a dizer-me que querias ser uma coisa no filme e não querias ser outra. O que é que não querias ser na curta? 

VP: Não queria ser bom.

RS: Não foi essa a frase que disseste, não querias ser um…?

VP: Eu queria ser o assassino. 

RS: Ele disse, «eu não queria ser um cadáver, eu queria ser o assassino». Talvez para a próxima, filho. Podemos pensar nisso. 

Esse casting foi muito mal feito, Hugo.

Hugo Pinto: Basicamente, a curta é a história dos domingos e sábados à noite aqui em casa, não tem nada que saber. Ele só fez dele próprio. [risos] 

Como é que chegas ao cinema? Como é que começas a fazer filmes, Hugo?

HP: Quando era puto, queria ser realizador de cinema. E não me perguntes porquê. Os meus pais não viam filmes. Sou o mais velho de três. O do meio acho que também não via filmes, e a minha irmã nem tinha nascido e eu já queria ser realizador. Achava piada às coisas. Via os filmes [antigos], a preto e branco, [na televisão]. E comecei a ver cenas muito antes do que devia. [Queria realizar], mas comecei a trabalhar e fui parar à contabilidade do [Hospital] São Francisco Xavier. Entretanto, aconteceu a oportunidade de trabalhar para televisão, que é basicamente o primo afastado do cinema. Haja preconceito ou não, a televisão é mais próxima do cinema do que a contabilidade. Fui trabalhando [na área], fui fazendo coisas giras em televisão, tudo muito diferente. E, a dada altura, quis fazer uma curta, mas ainda bem que não fiz [logo] porque não tinha a mínima capacidade para a fazer, não teria aprendido nada. Não tinha bem a noção do que era [fazer uma curta]. Quando [finalmente] a fiz, tinha conhecimentos técnicos suficientes, mas foi um bocado por estar com pessoal em televisão, que queria fazer coisas diferentes. Eu queria cinema e fui lá parar ao calhas.

E começaste logo com cinema de género? 

HP: Eu queria contar histórias. A primeira curta que fiz foi para ela [a Rute], ninguém sabia. E pensei que era uma curta única, não ia fazer mais. Até pela dor de cabeça que é fazeres uma curta sem apoios, sem nada e logo a primeira, tens sempre dúvidas em tudo. E as certezas que tens não são bem certezas. [Mas] a curta correu bem. [Na altura], não sabia que havia festivais, não sabia que os festivais eram competitivos, que ganhas um e perdes dez, mas de repente pensei: é isto. Queria fazer A Escritora logo a seguir e foi complicado. Entretanto, surgiu uma oportunidade de participar no 48 Hours Film Project. Eu não queria, mas a Rute reuniu a equipa. Toda a gente queria, menos eu, e ela, na altura, disse uma coisa que me ficou na cabeça: «se correr bem, tens a tua segunda curta pronta e é mais experiência, mais uma história, mais um divertimento, seja ele a correria de 48 horas ou não. Se não [vai] correr bem, não vai». A equipa concordou toda. Tem de ser uma curta que tu vejas e sintas que é independente, que depois se vai revelar isso. Ninguém percebeu que aquilo foi feito em dois dias. Foi ao MOTELX, foi a outros festivais e esteve pré-selecionado para os Prémios Sophia. E pensei: se ninguém percebeu e eu gostei do produto final… Deu aquele impulso. Mas 48 horas nunca mais. 

RS: Já fizemos.

HP: Tenho montes de guiões, montes de coisas preparadas, coisas que até podia, se fôssemos pensar a fundo, rodar no mês que vem. Mas depois a vida, os três putos, o trabalho, o trabalho dela, os livros dela, a televisão. Não sei como é que cheguei à sexta [curta]. O Intruso, que foi filmado com um telemóvel, foi uma experiência também. Acabei por perceber que quero contar histórias, vamos prosseguir com as histórias. Dentro disso, três das histórias das seis curtas são de terror, porque é um género de que gosto.

Gosto de Te Ver Dormir começa como um conto que está publicado na Fábrica. O que vem primeiro, o conto ou o filme?

RS: Primeiro o conto e depois o filme.

Mas, quando o escreveste, era já a pensar no filme ou são coisas separadas?

RS: Quando o escrevi, já tinha a ideia para a curta.

HP: A ideia foi entreter os putos nas férias e fazer a microcurta, e ela escreveu o conto. 

RS: Nós já tínhamos a ideia do rapaz, mas [faltava perceber] o porquê. E liguei o computador e aquilo saiu, porque o mais pequenino uma vez disse-me [baixinho]: «gosto de te ver dormir».

HP: Até hoje, acordo com essa porcaria, porque aquilo mete medo. Ele diz-te isto ao ouvido e pensas: ai. Porque depois tens toda aquela bagagem dos filmes de terror que toda a gente já viu, e sabes o que acontece na vida real, e pensas: isto um dia vai acontecer. [risos] 

RS: Quando escrevi, senti ali um bocadinho de maternidade.

HP: O conto é transversal a qualquer temática. Se leres o conto e puseres para trás tudo o que é no ângulo de terror, aquilo pode ser uma história para crianças. É isso que eu acho genial no conto. Já a curta não dá. O mais pequenino não viu o filme e não vai ver [para já].

RS: Nas filmagens, foi top fazermos todos juntos um projeto destes. Não sei se o Diogo quer dizer algumas palavras? Queres voltar a fazer um filme?

HP: Não quero fazer, com o stress de fazer a curta. De todas as que fizemos, foi a mais difícil. Tínhamos muito pouco tempo ou quase nenhum. E se nas outras costuma ser uma equipa de nove ou dez pessoas, que depois se desdobra e cada um faz três ou quatro trabalhos, esta aqui era mesmo um a fazer dez coisas.

RS: Para quem não queria repetir o 48 Horas, conseguimos fazer um bocadinho pior com uma equipa mais reduzida. [risos] E com tempo muito mais reduzido. 

HP: Sim, a questão foi que tive mais tempo para editar, mas, a nível de rodagem, foi muito mais rápido. Depois, tive tempo para trabalhar. E gravo sempre a mais, porque nunca fecho as cenas. Para mim, o guião fecha-se na timeline. Nós não nos apercebemos, na rodagem, que, quando o Diogo esteve o dia todo a dizer «eu não gosto de fazer isto», não era nervos. Ele não gostou mesmo. Ele não quer fazer outra. Estava mesmo [chateado], o que foi ótimo porque, em vez de ser o mérito de ator, é o ator contrariado, que é ainda melhor. Quando ele dizia «eu vou-te matar com uma faca», provavelmente matava-te mesmo com uma faca no filme só para ir jogar. [risos] 

RS: O mais velho, David, foi quem nos ajudou na parte técnica. Portanto, não aparece no filme. 

HP: Ele fez o making of do Piquenique, andou lá a puxar cabo.

RS: Esteve lá sempre connosco, nas gravações, e viu o que custa. 

HP: Portanto, metade das coisas no Gosto [de Te Ver Dormir] praticamente não tinhas de explicar muito, ele já estava mais ou menos inteirado, e acho que ele é bastante intuitivo. Ele tinha uma certa sensibilidade para perceber, por exemplo, quando é que o Paulo [Oliveira] estava «rebentado» e precisava de alguma coisa, ou porque é que aquela luz não devia estar noutro sítio. Antecipava um bocadinho e ajudava imenso. E, como é o irmão mais velho, estar a dar o litro e saber o que estava a fazer também dava um bocado de confiança. Porque o outro, mesmo amuado, também estava nervoso, e senti que sentiu na pele o que todos os atores sentem. Não interessa se és conhecido ou se fizeste dez longas e vinte curtas. Os atores estão sempre à rasca. 

RS: Ele decorou o texto super-rápido, não precisou que lhe dessem deixas nem nada. Acho que ele tem jeito. Como foi muito pouco tempo para gravar e foi feito em casa, tinha sempre aquela sensação de «toca a fazer isto bem logo à primeira que vou ter vizinhos a baterem-me à porta». Correu muito bem, e eu gostei muito do resultado final. Não estava à espera de que ficasse tão forte.

Mas metiam-se nesta aventura outra vez?

RS: Eles portaram-se muito bem e correu tudo muito bem. Mas tínhamos uma janela temporal muito pequena.

HP: O resto estava tudo estruturado, eu sabia exatamente o que queria fazer. Se fosse para fazer uma longa disto, eu fazia.

RS: O problema é quando o miúdo diz que já não quer. Eu como mãe, sabendo que ele não quer mesmo, já não arrastaria o Diogo para o filme. Ficaste traumatizado?

Diogo Pinto: Não.

RS: Fazias outra?

DP: Não. 

E não só o filme foi selecionado para o Fantasporto 2025, como é a sexta curta portuguesa em 46 anos de festival que está a competir em duas secções: Prémio Cinema Português e Melhor Curta de Cinema Fantástico. 

RS: Eu ainda estou completamente babada.

HP: Depois de perceber [que está no meio] das outras vinte curtas, para mim, está ganho. Para mim, está feito. Se me perguntares qual é o filme que mais gosto na vida, eu vou responder-te de uma forma diferente todos os dias, quanto mais selecioná-los. Portanto, fiquei um bocadinho surpreendido. Acho que a curta está muito fixe. Mas, lá está, há dias que gosto muito da curta e há dias [que não]. Esta foi das curtas com que tive mais dificuldade em fazer as pazes, porque queria ter um bocadinho mais tempo. 

Se tivesses mais tempo, provavelmente não ias acrescentar ou não ias mudar muita coisa. 

HP: Eu fiquei na dúvida em todos os planos de todas as curtas que tenho. É uma sensação em que tens de saber parar. Está feito, está feito, acabou. São inúmeras as opções que tens. E, quando ficas com uma cena na cabeça, às vezes, é por uma questão de produção, outras vezes é por uma questão de uma decisão que tomaste na altura. Aquilo fica-te para a vida, e há dias que te perturbam mais ou menos. 

RS: Brilhante foi dizer à família «fizemos aqui um filme com os miúdos, querem ver?». [risos]

HP: Depois, ficou tudo calado. [risos]

Depois do Fantasporto, o que é que vem a seguir para o filme? Ou para outros projetos vossos? 

HP: Estamos a preparar uma longa, mas a longa tem muito que se lhe diga, portanto, nem vou adiantar uma data agora. Mas, a nível de curtas, estou a preparar quatro.

Ao mesmo tempo? 

HP: Quando arrancas, o processo de pré-produção é uma de cada vez. Ainda não estou nessa fase. [Relativamente] ao processo criativo, há dias em que estou mais virado para uma, outros dias estou mais virado para outra. E depois, a curta mais fácil de executar a nível de produção é sempre a que vem a seguir. Tenho uma ideia muito concreta e provavelmente vou filmar uma delas já este ano [2025] com o Paulo [Oliveira], que vai ser diretor de fotografia. Depois, há duas curtas que poderia fazer já, se tivesse apoio. Tenho duas longas, uma de terror, outra não, mas é muito difícil. Tinha de tirar um ano da minha vida, com ou sem apoios. E quero adaptar o último livro que ela escreveu de contos.

RS: E este rapaz transforma contos infantis em terror. Vê lá bem como a cabeça dele funciona. 

HP: Aquilo, para mim, é uma história de terror. 

Como espectadores, vai ser a vossa primeira vez no Fantasporto? 

HP: Sim, vou estar dentro do espírito, mas também há muitos filmes portugueses que vão lá estar e que quero ver.

 

Nota editorial: 

A versão em áudio pode não corresponder na totalidade ao texto que aqui publicamos. A versão em texto da entrevista foi editada para, entre outros aspetos, limar traços de oralidade e condensar algumas respostas por uma questão de coerência.