Entrevista ao autor Pedro Moura

Como Flutuam as Pedras, criado em conjunto com João Sequeira, é o seu mais recente livro.

«Há muitas obras que tiveram uma excelente receção no seu tempo e que depois ficaram esquecidas — e justamente, porque não são significativas. Há espaço para tudo. E há coisas que foram redescobertas. Não cabe ao autor estar preocupado com isso, não é um bom princípio psicológico.»

Sandra Henriques

O nosso livro está à venda!

O seu mais recente livro, Como Flutuam as Pedras, foi o pretexto para esta entrevista. Falámos de banda desenhada e terror na academia, de trabalho versus inspiração e do que diria às novas gerações de criadores se tivesse oportunidade. Uma dica? Nada do que já não tenha dito na sua longa carreira no ensino.

 

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Quem é o Pedro Moura? 

Não sei. [risos] Só conheço essa pessoa por dentro, não sei muito bem o que responder. Posso responder-te dizendo o que faço, mas também pode parecer demais estar a falar das várias dimensões. Porque tenho vários trabalhos. Dou aulas, sou investigador académico publicado e tenho-me dedicado à escrita da banda desenhada.

É complicado, de facto, respondermos sobre quem somos quando trabalhamos em muitas áreas. Tens alguma relação com o terror, como fã ou de forma criativa? Dizias que o teu último livro, Como Flutuam as Pedras, não era tanto terror como outras coisas que tinhas feito.

Não sei se posso dizer que sou um fã de terror no sentido de ter a prateleira dedicada a esse género ou território em particular. Eu estudei literatura, sobretudo. Em termos de formação académica, o meu campeonato é o da literatura, mas, enquanto professor, tenho-me dedicado à banda desenhada, o que, por vezes, também toca noutros campos como a animação, a ilustração e o cinema. Para mim, o território do terror é apenas uma província de toda a criação humana. Existe desde cedo. De uma forma ou outra, sempre foi um objetivo da criação literária. Por exemplo, dou aulas de argumento e de ciência literária, e vou sempre ao livro fundamental de quem quer aprender a escrever ou aprender narratologia, Poética de Aristóteles, que fala imediatamente de terror e de piedade. São as duas grandes emoções que subjazem, de certa maneira, a qualquer criação. Quanto ao meu trabalho pessoal, não sei. Há 10 anos, no meu blogue, Ler BD, escrevi um artigo precisamente sobre o terror ou o horror na banda desenhada, cujo título era Sob o Signo de Hellblazer. Em termos de criação, se olhar para as coisas que fiz, por exemplo o livro Os Regressos, a primeira novela gráfica propriamente dita criada com a Marta Teives, é uma história que tem uma primeira parte realista e uma segunda parte de fantasia. E essa parte de fantasia pode ser chamada de fantasia negra, porque acaba mal. Não sei se é propriamente terror, no sentido de criar a típica ansiedade, mas lida com aspetos mais negros da fantasia. Também tenho um livro anterior, uma coleção de poesia em prosa ilustrada, chamada Variações do Anjo da História, onde se pode discutir que, apesar de ser uma prosa um pouco mais dedicada, tento fazer uma descrição dessa paisagem de anjos que nada têm de angélico, pelo contrário, têm todas as forças que compõem a existência humana. Não são os aspetos mais positivos, delicodoces, são mais assustadores e, se calhar, até os mais verdadeiros da nossa vida. E depois, na Umbra, e de certa forma no meu próprio fanzine, Quireward, por vezes há histórias que lidam também com alguns tropos típicos das histórias de horror, de uma forma mais ou menos intensa. Sobretudo na última Umbra, a número 4, fiz uma história em que tentei lidar com o meu maior medo neste momento da minha vida. E fiz uma história a partir desse medo, precisamente para o tentar exorcizar.

Já a li, As Brasas e a Lenha. Queres falar-me um pouco dela, como é que a história surgiu?

Prefiro que sejam as pessoas a ler e a fazerem-me perguntas do que estar a explicar a história. As histórias não se explicam, servem para ser lidas. Mas acho que é uma história bastante simples, quase banal, no sentido em que um pai tenta proteger as filhas numa situação de guerra. Penso que é claríssima a razão que me leva a fazer uma história dessas. Nós, em Portugal, provavelmente pensaremos que estamos longe de um conflito armado, mas a verdade é que, se pensarmos nas coisas de uma forma realista, não é nada difícil que sociedades que aparentemente têm os seus problemas resolvidos descambem em conflitos armados, em situações horrorosas. Portanto, utilizando as guerras que existem, não só a da Ucrânia, que nos entra pela casa dentro precisamente por ser mais próxima, imaginei uma situação em Portugal, a de um pai a tentar proteger as filhas da pior maneira. E corre mal. Aborrecem-me, de morte, as personagens que são muito boas ou muito más. Uma coisa que me move bastante na criação das histórias e das personagens é pensar, dentro de nós, que possibilidades existem para vítimas e esbirros. Normalmente, temos sempre aquela fantasia de que «se tivesse vivido no tempo X, teria sido um dos aliados desta causa e teria ajudado estas pessoas a salvarem-se». Mas isso é um mecanismo muito falso que criamos, uma fantasia, que projeta em nós uma defesa do que, no fundo, poderíamos fazer. E o que poderíamos fazer era precisamente sermos nós os esbirros e os algozes de outras pessoas. Pensamos sempre que faríamos a coisa melhor, mas eu prefiro pensar em que medida faria algo de mal. E a verdade é que provavelmente seria por muito pouco — e isso o é que assusta mais. Porque normalmente, quando a fantasia é «eu seria uma pessoa boazinha», julgo que a pessoa está a mentir a si mesma. [risos]

Antes disso, na Umbra 3, escreveste a Weep Me Not Dead

É uma história que se pode dizer muito mais próxima daqueles tropos de Black Mirror, imaginando uma sociedade apenas daqui a 10 anos, mas olhando também para a nossa, vendo quais eram as tecnologias que não existiam há 10 anos e que influenciam de uma maneira incrível a nossa sociedade. Vemos, por exemplo, nos Estados Unidos, que o Twitter é uma força inegável da condução política. Podemos pensar que, se perdesse um telemóvel nos anos 90, era uma chatice, uma inconveniência, era caro. Hoje, a chatice de perder o telemóvel nem era o preço, e sim perder a minha vida toda. Assim, aquilo que imaginei foi precisamente que passos tecnológicos poderiam existir, daqui a pouco tempo, que aceitemos imediatamente nas nossas vidas, e nos que controlem de tal maneira que abdicamos de certas responsabilidades. E, ao abdicarmos de certas responsabilidades, ou até de capacidades do nosso comportamento, obviamente estamos a confiar muito mais em forças externas. Claro que isto foi um exercício, não tenho nada contra computadores. A ficção é precisamente experimentarmos todo este tipo de perguntas, hipóteses, etc., e explorá-las. Essa história passa-se numa sociedade em que as pessoas não podem ter filhos sem mais nem menos, têm de pedir uma autorização. E é sobre uma mulher a tentar de tudo para obter essa autorização. Depois, a sua companheira resolve fazer as coisas de outra maneira, porque sabe que, se jogar o xadrez social de uma maneira diferente, poderá vir a ter melhores hipóteses de ter essa criança. É um horror social, digamos assim.

Um horror social, sem dúvida. Nestas duas histórias, gosto muito destes finais muito abruptos, de corte. 

É curioso, porque n’Os Regressos houve pessoas que também acharam que o fim foi abrupto. Mas, tendo em conta que estamos a falar de finais infelizes, ao contrário do Como Flutuam as Pedras, penso que talvez seja uma consciência de que as más notícias chegam rápido. E a verdade é que, quando existe uma coisa mesmo horrível, não há preparação. Há esferas da vida humana que não nos preparam para essas más notícias. Aqui, havendo a ideia de fazer uma história com um final infeliz, não há hipótese de este casal discutir e voltar ao mesmo sítio, assim como, na história da guerra, não há hipótese de ele ter um momento de dúvida, por estar a pensar à frente. E é mesmo essa a ideia. O abrupto é necessário e sobretudo perto do final da história. Aborrece-me quando as histórias já têm em si o mecanismo de acalmar o leitor ou o espectador, porque é uma batota, não está a deixar o leitor fazer o seu trabalho.

Pedro Moura

Como professor, sentes que a academia está mais aberta à banda desenhada, ou ainda há aquela ideia de que é «intelectualmente inferior»?

Para dar essa resposta, tinha de ser um pouco mais preciso, portanto isto é apenas uma súmula. E peço desculpa, é um pouco presunçoso da minha parte, mas passei por várias universidades. Licenciatura, mestrado e doutoramento foram feitos em três universidades diferentes, uma delas no estrangeiro. Dei aulas fora, dou aulas cá em várias instituições, etc. Diria que, do ponto de vista de cursos do politécnico ou escolas artísticas, pragmáticas, esse preconceito não existe, no sentido em que a banda desenhada começa a ser, ou é já, uma área criativa como outra qualquer, como videojogos, animação ou ilustração. Acho que a integração ainda não é total, só agora começam a aparecer mais cursos dedicados exclusivamente à banda desenhada e ilustração. Estou envolvido em dois projetos, que irão abrir, espero eu: duas pós-graduações de banda desenhada e de ilustração e character design, na Escola Superior Artística do Porto e na Universidade do Algarve. Em termos gerais, ainda não há uma flexibilidade de aceitar a banda desenhada como um campeonato intelectual. Obviamente que há pessoas que se dedicam à banda desenhada, que há um paper ou outro dedicado à banda desenhada, e pode dizer-se que, num curso de literatura, existe uma disciplina em que se fala de banda desenhada. Sem dúvida que existe, mas ainda são esforços individuais dos professores e não algo sistemático. Outra coisa curiosa que também noto é haver, às vezes, uma ultra-correção, em que vejo pessoas a dedicarem-se à banda desenhada, a falarem de determinados objetos de banda desenhada, que são retirados do território da banda desenhada e que são tornados em objectos únicos, mas como se não tivessem relação com todo o outro território da banda desenhada. Vou reduzir isto a uma anedota, de uma pessoa a dizer que não lê BD, só lê novelas gráficas. Ninguém diz: «eu não gosto de ver filmes, só vejo cinema». Vemos imediatamente o ridículo desta frase, mas, na banda desenhada, isto pode ocorrer, e as pessoas não se apercebem do ridículo que é dizer uma coisa destas.

Vejo isso com o terror, também. Ainda há muito essa ideia de não ser uma coisa séria.

Estive envolvido numa curta-metragem chamada Dédalo, do Jerónimo Rocha, um filme de ficção científica, com monstros, que ganhou uns prémios há uns anos. Estou envolvido, agora, na transformação dessa curta numa longa-metragem, como coargumentista. Uma das coisas que tentámos foi [produzi-la n]a RTP e tivemos uma resposta que não deixou espaço para dúvidas: «o horror não é um género digno de produção». Acho que são preconceitos que existirão sempre. Agora, se calhar, vou ser um pouco arrogante, mas tem a ver com pessoas que têm um determinado tipo de inscrição social e cultural, que têm medo de ter um momento de fraqueza e dar a entender que têm algum prazer com culturas mais populares. Por outro lado, muitas vezes, também tem a ver com uma certa ignorância do tipo de discurso que é possível criar a partir disso. Eu, por exemplo, nesse tal artigo [de que falei antes], e noutro muito longo sobre a obra do David Soares, falava de um livro do filósofo americano Noël Carroll, o Paradox of Horror. A pessoa reduz tudo àquilo que já conhece: é só sangue e horror, etc. E não é só isso.

Já escreves para banda desenhada há algum tempo. Sentes que é um género mais fluido, com menos limitações?

Essa pergunta é muito difícil porque estás a fazê-la a uma pessoa que, tendo estudado literatura, de forma intensa, tem sempre muito presente o que a palavra «género» significa, o que a palavra «tropo» e «clichê» e «estrutura» significam. É muito difícil que se consiga escapar dos géneros que já existem, a menos que estejamos a trabalhar em territórios experimentais. Considerando como funcionam os géneros, acho mais interessante explorá-los, mas com consciência, em vez de pensar que [o meu trabalho] não tem género. Uma pessoa que diz que não tem género cai sempre, de forma ainda mais formulaica, nas coisas da pessoa que tem consciência do que está a fazer. É normal. Portanto, essa questão é uma falsa questão.

O que é que dirias à nova geração de criadores, de público? 

É muito difícil falarmos com as pessoas individualmente, porque, quando falamos individualmente, temos tempo e temos oportunidade de, através do diálogo, descobrir o que essa pessoa pretende ou gosta. Tive a experiência de trabalhar numa loja durante algum tempo, e uma coisa que adorava fazer era aconselhar as pessoas a lerem um determinado livro com base no que elas me diziam gostar ou não gostar, dizendo que, se não gostassem, lhes fazia um desconto ou qualquer coisa do género. Não vou dizer que ganhei sempre, mas quase sempre consegui que a pessoa levasse algo. Claro que é preciso ter mesmo um diálogo com essa pessoa, é preciso conhecer o texto. Faço aqui um parênteses: aborrecem-me os fãs acríticos de uma coisa que acham que toda a gente vai gostar do mesmo. Eu diria que a preocupação com o público é um mau ponto de partida. Acho que o que a pessoa deve procurar, em primeiro lugar, é o que ela pretende explorar em si mesma. Tem de ser genuína e honesta consigo própria. Depois, no momento em que a obra existe, é procurarmos o nosso público e tentar encontrar uma maneira de nos sentirmos bem quando o encontramos. Há pessoas que têm muito sucesso de massas, mas, quando me aparece uma pessoa, como tu, que leu a história de uma determinada maneira, eu digo: «boa, encontrei uma pessoa que leu e gostou, já ganhei». Não gosto daquela atitude romântica de «ninguém percebe o meu trabalho, quando eu morrer é que vão descobrir», mas há coisas que podem ter mais impacto a longo prazo do que no imediato. Há muitas obras que tiveram uma excelente receção no seu tempo e que depois ficaram esquecidas — e justamente, porque não são significativas. Há espaço para tudo. E há coisas que foram redescobertas. Não cabe ao autor estar preocupado com isso, não é um bom princípio psicológico. Acho que uma pessoa, para se sentir bem consigo própria, deve pensar em fazer as suas coisas, publicar e, no momento em que publica, fazer o trabalho de publicidade, mas depois começar a trabalhar no próximo projeto.

No que é que estás a trabalhar agora? Quais serão os próximos projetos?

Estou sempre a trabalhar em várias coisas. Neste momento, estou a finalizar mais um romance gráfico, longo, realista. Posso dizer que tem a ver com a comunidade judaica em Portugal nos anos 40. Estou também a trabalhar noutras coisas relacionadas com a adaptação de textos literários. Todos os meses, sai uma história minha na Revista CAIS. Estou sempre a fazer qualquer coisa. Não acreditem na inspiração, porque isso não existe! É trabalho.