Entrevista ao compositor Nuno Cruz
Entre os seus projetos, está a série americana de ficção científica Strange Places, vencedora de um Emmy em 2022 para efeitos visuais
«O compositor não tem o mesmo protagonismo do realizador ou do produtor. Eu gosto disso. O meu cenário ideal é ter um trabalho que toda a gente reconhece, mas que ninguém saiba quem escreveu.»
Profissionalmente, descreve-se como compositor/produtor e já compôs scores para vários géneros e vários formatos, incluindo algumas curtas-metragens portuguesas e uma série norte-americana de ficção científica, Strange Places, que ganhou um Emmy em 2022 para efeitos visuais.
Nuno Cruz não ignora os seus feitos, mas prefere concentrar-se no que ainda tem para aprender e evoluir nesta profissão que o torna — sem que se importe com isso — «invisível». Nesta entrevista, falámos de humildade (criativa e profissional), do lado menos criativo de fazer música para filmes e televisão, e nos obstáculos de trabalhar na área em Portugal (que Cruz acredita serem, muitas vezes, autoimpostos).
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Tu és compositor, ou o que é que chamas a uma pessoa que faz scores? Não é bem banda sonora…
Banda sonora é outra coisa. Era literalmente uma banda de fita que incluía o áudio, e por acaso, por alguma razão, o termo pegou. Score é mais indicado, embora não haja grande tradução. Sim, pode dizer-se que quem faz bandas sonoras é compositor. Existem pessoas profundamente especializadas em fazer bandas sonoras; depois, há pessoas especializadas em televisão. Mas agora que os géneros se estão a fundir muito e é tudo muito cinemático, tudo muito dramático, acabas por ter compositores de cinema que ocupam esse espectro. Em Portugal, ainda não se faz a distinção entre compositor e compositor para cinema; não se faz a distinção entre a pessoa que mistura discos e a pessoa que mistura um filme, porque um set de competências não implica o outro. E vê-se muita gente que é excelente a escrever canções, a compor música, e, quando chega à televisão ou ao cinema, faz aquilo que está habituado a fazer e que não atinge a marca, porque é uma linguagem diferente. Eu sou naturalmente curioso, porque quero saber como se produzem todos os géneros musicais, como se tocam instrumentos. Costumo apresentar-me como compositor/produtor porque normalmente acabo por ser eu a produzir as composições que faço, ou porque sou a pessoa mais indicada para o fazer ou porque alguém vem depois e não faz o melhor trabalho.
Como é esse processo criativo de compor e produzir música para cinema e televisão?
Com alguns realizadores [como o Paulo A. M. Oliveira], estamos naquele nível em que não precisamos de terminar as frases, ou basta uma expressão, ou meia palavra. [Quando não existe essa ligação], parte do trabalho do compositor é tentar entrar na cabeça do realizador. Fazer música é um elemento muito escasso no processo de fazer bandas sonoras. É mais sobre a simbologia, a psicologia. Aliás, na minha experiência, sempre que se fala de música propriamente dita, do ponto de vista técnico, estraga tudo. O processo é ajudar alguém, que tem uma visão, a exportar essa visão para o mundo real e torná-la o mais palpável possível, tão palpável quanto um filme possa ser. E essa é a função, é perceber o que a pessoa quer; se o que a pessoa quer está ou não alinhado com o que o projeto necessita e tentar fazer com que isso se traduza para a realidade. Se é através de guião, de conversa, de imagem? É através de tudo. Já tive um projeto em que não tinha as imagens porque houve uma série de atrasos alheios a toda a gente, e tive de começar a mapear toda a música através do guião, sabendo que aquilo ia ser mudado quando se começasse a montar o filme. Nesse contexto, escrevi todo o conceito no papel [para um episódio de televisão, de 20 minutos] e depois foi esperar que as imagens chegassem e que batesse certo. Porque, se não batesse certo, não iríamos conseguir cumprir o prazo que estava estabelecido para a estreia, especificamente para a noite de Halloween.
Isso é trabalhar na corda bamba e sem rede!
Completamente. Eu e toda a gente. Porque, se fosse preciso uma revisão que demorasse nove horas, poderia ser um dia a mais que não tínhamos. Apesar disso, a série [Strange Places] teve duas nomeações para um Emmy (efeitos visuais e realização) e ganhámos o de efeitos visuais. Trabalhámos todos em tempo recorde, toda a produção terminou em duas semanas quando devíamos ter tido pelo menos o dobro do tempo. Também é preciso ter em conta que várias pessoas da equipa já tinham estado numa posição semelhante, e isso ajuda. Mas a parte mais divertida de fazer a banda sonora é com imagem, quando o realizador nos envia o filme.
Quase como os músicos que tocavam durante os filmes mudos?
Um pouco, sim. Não há nada de criativo no processo. É criativo na medida em que usamos os nossos recursos cognitivos para fazer [o trabalho], para construir alguma coisa, mas existe uma forma e uma fórmula de construir cenas. Por exemplo, podes fazer uma cena de ação do ponto de vista de um filme de terror, podes fazer uma banda sonora romântica do ponto de vista de um drama, e há formas e fórmulas de o fazer. É uma questão de olhar para a imagem, o que é que necessita; o projeto é rei. Não havendo espaço para ser inovador ou criativo, não o podes ser.
O teu ego tem de ficar de fora.
Sim, o ego tem de ficar à porta. E isso é um erro que se comete muitas vezes, o de as pessoas fazerem aquilo que querem fazer e não aquilo que é necessário. Muitas vezes aquilo que é necessário não está alinhado com aquilo que gostaríamos que fosse.
Tens de ver o filme como um todo, não é? A mensagem que se quer passar.
[A música] é apenas mais uma peça na mecânica [do filme] e é uma peça que vem tarde, já vem na pós-produção. E alguém está a depositar o trabalho de meses, um orçamento muitas vezes considerável e a confiança no teu trabalho. Tens de fazer justiça a essa confiança e certificar-te de que as pessoas ficam satisfeitas e que o trabalho fica bem feito, no sentido que serve o filme, não porque achas que tem de ser de uma determinada forma. O ego tem de ficar de fora. Tens de saber quando tens de desligar e viver com o que fizeste, para o bem ou para o mal.
Como é fazer score para um filme de terror? Calculo que tenhas de gostar do género, antes de mais.
Não é muito diferente de fazer para qualquer outro género, os princípios são os mesmos. É mais divertido porque podes criar sons mais dissonantes, sons que perturbem mais, as composições são mais divertidas de fazer. E mexe mais com os medos e as inseguranças primordiais dos seres humanos. Tens um retorno maior porque são exatamente aqueles medos, aquelas ansiedades que as pessoas não querem reconhecer que têm. Os princípios de construir a banda sonora, quer do ponto de vista técnico quer do ponto vista emotivo, são os mesmos.
Mas sentes que, quando é um filme de terror, podes ultrapassar certos limites?
Depende para onde estás a trabalhar e para quem estás a trabalhar. Depende dos mercados, dos distribuidores, porque há situações em que temos de suavizar ou a televisão não passa. Se for muito terror, muito dramático, eles não vão passar porque é demasiado. No mercado independente, há oportunidade de empurrar esses limites.
Alguma vez te disseram «quero que o score deste filme seja parecido com o filme X»?
Já. Depende se é adequado ou não àquele filme. E claro que não se pode entrar no território do plágio. Pode fazer-se algo «ao género de», mas com o nosso toque pessoal. E isso, às vezes, até é bastante interessante de fazer. Se não se adequa, falo sempre com o realizador, e explico por que é que o efeito não vai funcionar. Um dos erros que se faz em filmes de terror é que estás sempre a reconhecer eventos com acentuações: um relâmpago, uma porta a bater. Estás sempre a fazer alguma coisa musicalmente para reconhecer esse evento. Já dessensibilizaste a audiência de tal forma que, quando chega o evento importante, já não faz efeito. É isso que tens de ter em conta. São conversas que tens muitas vezes com os realizadores, e normalmente eles são sensíveis aos argumentos.
Viveste na Suíça. Foi aí que começaste a dedicar-te à música, a trabalhar nesta área?
Comecei a dedicar-me à música ativamente no final dos anos 80, princípio dos anos 90, quando era adolescente. Comecei com bandas e, uns anos antes de ir para fora, comecei a explorar o mundo das bandas sonoras para cinema e televisão. Foi depois na Suíça que comecei a trabalhar, em 2009, com o mercado americano. Comecei a ter propostas para trabalhar em filmes independentes. Não teve nada a ver com a localização, mas foi lá que comecei a construir portefólio, sim.
O mercado americano de cinema independente é obviamente maior do que o nosso, mas tu sentes que o mercado português não cresce mais ou não se diferencia porque não se tomam riscos?
A palavra-chave é risco. Temos uma aversão ao risco enorme. Há três fatores que nos prejudicam: temos pouca iniciativa empreendedora, temos aversão ao risco e temos uma grande falta de humildade. Não estou a dizer que os americanos não têm nada disto, mas, de todos aqueles com quem trabalhei, é muito comum um realizador americano vender o carro para financiar o filme, ou fazer um crédito pessoal. Aqui em Portugal, não vês isso, e isso é um problema, tem resultados limitados. Estavas a dizer que o cinema americano independente é muito grande, mas primeiro tens de definir o que é o mercado americano, porque existem vários: o internacional, que é aquele que conhecemos, o doméstico, o de home video, os regionais (que são aqueles que mais se aproximam dos nossos em termos de dimensões e em termos de dificuldades de financiamento e de distribuição). Lá, como cá, há benefícios fiscais. Em Portugal, fazem-se demasiadas curtas seguidas, mas o financiamento, o retorno financeiro, está nas longas. As curtas não têm valor comercial. Têm de servir para as pessoas adquirirem experiência, criarem uma rede profissional de contactos, para cometerem erros, experimentarem histórias. Não há mal nenhum em teres uma carreira de longas e depois fazeres uma curta para experimentares uma ideia, ou para experimentares um género. Se as pessoas querem ter alguma oportunidade de financiamento, tem de ser no mercado das longas.
Dizias que a falta de humildade era um entrave.
A falta de humildade [criativa] faz perder tempo, faz com que não estejamos no nosso melhor. Porque, se apontamos a fasquia para baixo e não conseguimos aprender, nunca estamos no nosso melhor e não conseguimos criar filmes competitivos, e esse é o problema. Vivemos num mercado global, vivemos numa economia global, temos de perceber que cada coisa que façamos está a competir [com outros filmes de outros países].
Para mim, o standard sempre foi o melhor filme que se fez dentro de determinado género.
Vamos ver onde estamos a falhar ou onde estamos a fazer bem. Ficamos demasiado fechados na nossa bolha. Quantas vezes é que já não fiz coisas em que pensei «isto está fantástico», e depois fui comparar com coisas do género e afinal estava muito abaixo. [risos]
E achas que a competitividade também é um fator que pode influenciar os apoios financeiros?
Cria-se um ciclo. Queixamo-nos de não termos apoios financeiros. Mas não temos apoios financeiros porque não fazemos trabalho competitivo ou não fazemos trabalho competitivo porque não temos apoios financeiros?
As campanhas de crowdfunding poderiam ser uma alternativa?
Se calhar, as pessoas em Portugal estão menos dispostas a contribuir, não sei. Mas nada impede começar uma campanha de crowdfunding numa plataforma que chegue a outros países. A minha solução passa sempre por estender o braço lá para fora, porque foi isso que fiz e é isso que continuo a fazer. O mercado é mais interessante e aprende-se bastante. O nível de exigência é normal para alguém que queira ter a responsabilidade de ter um produto competitivo.
Achas que existe espaço em Portugal para cinema de sucesso comercial, ou isso está reservado apenas para quem já tem «nome»?
Eu até percebo e aceito isso, mas às vezes parece que existem obstáculos na criação de nome. Como é que alguém cria nome? Lá fora — e não querendo estar sempre a comparar com o estrangeiro —, crias nome com curtas, que ganham prémios. E às tantas já estás a planear a longa porque, entretanto, houve desenvolvimentos nesse sentido e vais criando nome. Depois, alguém te diz (e isso aconteceu comigo): «eu vi o teu trabalho e queria contratar-te para fazer a música para a minha série». Aqui, em Portugal, como é que tu crias nome nesse sentido? Existem muitos festivais, exibes o teu trabalho em alguns e depois fica por ali.
Sentes que, lá fora, a rede de contactos profissionais está mais bem estabelecida?
Sim, sinto que aqui está tudo muito disperso e parece que não existe acesso à informação. Podes pesquisar no Google e, em segundos, sabes como funcionam os mercados nos Estados Unidos e no Canadá. Não sabes como é que funciona em Lisboa, por exemplo. Eu estou online desde 2006, tanto eu como muitas outras pessoas. Em Portugal, parece que funciona tudo ainda à base do «conheces alguém» ou «conheces alguém que conhece alguém» e, no meio desta cadeia, perde-se informação. Uma alternativa é fazeres cold calls a empresas, e isso produz resultados.
Mesmo assim, já temos algumas produções que acontecem em Portugal, com equipas portuguesas. Mas continuam a ser produções maioritariamente estrangeiras.
Eu não entendo. Temos uma História riquíssima, e eu não sei de nenhum filme, com valores de produção elevados, que trate do D. Afonso Henriques, por exemplo. E não vejo nenhuma iniciativa por parte dos municípios. Porque isso, sim, atrai turismo. Eu sei que esses projetos estrangeiros fizeram uso dos benefícios fiscais, e eles fazem isso em vários países. As pessoas em Portugal também têm acesso a esses benefícios, cumprindo uma série de requisitos. Não sei a quantidade de filmes em Portugal que fazem uso desse mecanismo, mas, quando ouço as pessoas dizerem que há falta de orçamento, não as vejo considerar essa hipótese.
Por um lado, faltam os apoios, mas, por outro, falta também planear-se a comunicação dos filmes.
Uma coisa que noto nas produções [portuguesas] é que, quando se está a orçamentar, não se pensa nessa parte. Os orçamentos dos filmes americanos funcionam da seguinte forma: 50% é para a comissão das salas de cinema; depois, do que sobra, 50% é para o que eles chamam de PA (printing and advertising), e o restante é para a produção — isto de forma muito resumida. Ninguém vai ver o teu filme se não souberem que ele existe. Mas isso não é um problema só de Portugal. As produções independentes têm muito esse hábito.
Em que projetos estás a trabalhar agora?
Um dos projetos é um documentário histórico [Acherontia Atropos], com o Paulo A. M. Oliveira (fotografia) e o João Pedro Frazão (realização e argumento). Estou a preparar-me para fazer o terceiro e o quarto episódios de Strange Places. E depois há uma série de coisas que ainda não posso revelar. [risos] Mas não é terror! Infelizmente. [risos]
Se tivesses de dar um conselho a alguém que queira trabalhar nesta área, qual seria?
O conselho que gostava de dar, e que houve um amigo meu que me insultou e me disse que não o podia fazer, é desiste. [risos] Por uma razão muito simples: todas as pessoas que vão desistir porque eu disse para desistirem são aquelas que nunca iriam conseguir. Aqueles que disserem «não vou desistir só porque ele disse» são aqueles que vão ter alguma hipótese de vingar num ramo que é extremamente competitivo e injusto, onde há muito pouco mérito atribuído.
É um trabalho de certa forma invisível?
Sim, o compositor não tem o mesmo protagonismo do realizador ou do produtor. Eu gosto disso. O meu cenário ideal é ter um trabalho que toda a gente reconhece, mas que ninguém saiba quem escreveu. Pode ser desde a música do tempo na CNN a um filme, estou bem com o facto de as pessoas não me reconhecerem desde que o trabalho não seja atribuído a outra pessoa, obviamente. Mas essa é uma posição com a qual tens de estar bem. Se queres ter o protagonismo de alguém como o Hans Zimmer, tens de estar na posição dele. Porque esse protagonismo vem com muitos anos de sucessos continuados que se prendem principalmente com constantes êxitos de bilheteira. O conselho mais sério é estar constantemente a estudar, ouvir aquilo que as pessoas têm para dizer e ouvir sempre aqueles que têm mais experiência. Ter humildade. Se tiveres humildade, vais estar constantemente a desafiar os teus conhecimentos, o teu nível de experiência. Ou então, desiste. [risos]