Entrevista ao realizador Frederico Serra

Dezasseis anos separam Coisa Ruim de Criança Lobo, mas ambos os filmes partilham o mesmo ambiente característico, que tínhamos saudades de ver no grande ecrã.

«Acho que as crendices são uma manipulação muito grande da sociedade e das pessoas. O cinema tem esse papel, e os filmes de terror também. Gosto desta ideia de estar a manipular, sem ser de uma maneira gratuita.»

Ainda não havia um festival de cinema de terror em Lisboa, e os fãs do género rumavam ao Fantasporto, quando o Coisa Ruim apareceu nos cinemas, para mostrar que era possível fazer-se um filme de terror português.

Falámos com o Frederico Serra sobre o impacto desse filme, a série Lusitânia, que estreia em breve na RTP, os projetos futuros e como no terror cabem muitas histórias, nem todas «de género».

Sandra Henriques

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SH: Sandra Henriques; DL: Diogo Lopes

 

SH: Sentiste o impacto que o Coisa Ruim teve na altura, como o primeiro filme de terror português?

Não tive noção, na altura, de que isso ia acontecer. Até porque o Coisa Ruim surgiu da vontade de fazer um filme com um pouco de terror ou de género, que mexesse com as crendices, com o desconhecido. Mas não pensámos que ia ser o primeiro filme de terror português. Havia uma vontade dos dois, minha e do Tiago [Guedes], de fazermos um filme com estas características. O Rodrigo [Guedes de Carvalho], o escritor, juntou-se também com vontade de o fazer. Mas só consciencializei isso depois de o filme sair e de verbalizarem que era um filme de terror.

 

SH: Sim, para os fãs de terror, foi importante. Como foi a receção da crítica na altura?

Assim que acabámos o filme, o Fantasporto quis passá-lo na edição desse ano [2006] e ficou logo rotulado [como filme de género]. Com esse rótulo, até levou muito mais para o universo de terror do que era suposto. Porque o filme é um drama familiar, que pode criar desconforto em algumas situações. Sei, no entanto, que houve pessoas que não foram ver o filme porque têm medo de filmes de terror. E não assusta nada! [Quer dizer], há aquela cena da janela. [risos] E a visão dos miúdos também é arrepiante.

 

DL: E a cena da marcha fúnebre também tem impacto, mas não pelo susto.

Tem impacto, sim. É desconfortável. E isso é o que gosto que os filmes também passem. Mas ficou logo conotado como filme de terror, e nós surfámos essa onda, como se costuma dizer. Depois, foi selecionado para festivais de terror na Coreia, em Sitges… Eu não tinha noção de que havia tantos fãs de terror em Portugal. Percebi que havia pelo Tiago Guedes, porque no Porto há imensos, muito por causa do Fantasporto. Em Lisboa, na altura, o fenómeno estava mais disperso.

 

SH: Passaram 16 anos entre o Coisa Ruim e o Criança Lobo. O que é que te levou a voltar a este universo agora, a este género?

Deixei a realização durante muitos anos e estive mais dedicado à produção. Esta série, Lusitânia, foi o meu regresso à realização, nomeadamente com o Criança Lobo. Quando li estes guiões pela primeira vez, tive logo vontade de voltar a realizar. E o Criança Lobo foi aquele pelo qual fiquei logo apaixonado.

 

SH: Durante a estreia do filme no MOTELX, estava toda a gente à espera da transformação em lobisomem, porque é um filme de lobisomens, mas não é…

Mais uma vez, [como o Coisa Ruim] é um filme sobre um drama familiar.

 

SH: E, mesmo de forma muito rápida, acabaste por fazer a vontade aos espectadores e mostraste essa transformação.

E estive quase para não o fazer. Porque a história do Criança Lobo é concentrada na ostracização feita ao miúdo, que não sabemos até que ponto é baseada na realidade ou na crendice, e que não sabemos se se passa nos personagens ou no espectador. Sempre quis brincar um bocadinho com isso. Por isso, aqueles frames da besta só o espectador é que os vê; os personagens não os veem, nunca há contacto entre eles e o animal. Em conversa com o argumentista, chegámos à conclusão de que era interessante ele aparecer.

 

DL: Depois de teres corealizado um filme, como é agora realizar um filme sozinho? É mais libertador?

Há muitos anos que não realizo com o Tiago, por isso já não sei como é. A minha vontade de voltar a realizar foi tão grande que nem consciencializei essa questão de ser melhor ou pior, de ser mais libertador ou não. É totalmente diferente. Gosto imenso de trabalhar com o Tiago e trabalhámos muito bem os dois juntos. Acho que até há vantagens em trabalhar em equipa, constrói-se melhor o processo todo. Sendo que, para mim, o trabalho de realização nunca é trabalhar sozinho, gosto muito de delegar para que as pessoas estejam envolvidas e criativamente possam partilhar os seus conhecimentos. Há de ser sempre um trabalho de equipa.

 

DL: O que é que te leva a fazer terror? Nos teus trabalhos, sobressai sempre a busca da verdade e as crenças. No caso do terror, é mais a busca da verdade ou as crenças, neste caso populares, portuguesas?

As crenças e a verdade estão muito ligadas. É interessante brincar com isso, especialmente num país em que se vive com o peso do catolicismo e numa sociedade tão tradicional e ligada ao folclore. Eu não sei o que é que procuro. [risos] Porque, se só virmos a verdade, perde a piada. [risos] Acho que as crendices são uma manipulação muito grande da sociedade e das pessoas. O cinema tem esse papel, e os filmes de terror também. Gosto desta ideia de estar a manipular, sem ser de uma maneira gratuita. E isto é um jogo. Agora, se eu busco a verdade, aqui acho que estou a tirar partido de uma ferramenta muito interessante, que é definitivamente o que estas crendices fizeram às populações menos informadas. E isso é um manancial incrível para se fazerem filmes de terror.

DL: Tens muita História e que se explora pouco. E o que se explora é muito à base do catolicismo, não se olha para a História antes disso.

Sim, é muito à base do catolicismo. Foram séculos de obscurantismo, e depois séculos a controlar o povo.

 

DL: A Noite Sangrenta é quase essa busca pela verdade, não controlada.

A Noite Sangrenta é o que aquela mulher viveu. É terror da vida real. Aproveitámos isso e conotámo-la como sendo de terror, porque não era suposto ser. Era para ser um filme histórico, ligado à revolução republicana.

 

DL: O terror tem de ser catarse ou provocar desconforto?

Eu aposto mais no desconforto — e o desconforto não tem de ser pessoas a vomitar na sala. Não sei se consigo, se isso se reproduz no espectador, mas gosto de trabalhar os ambientes. Gosto de brincar com essas coisas, que o ambiente do filme deixe o espectador desconfortável ao ponto de o medo vir ao de cima. A angústia e o desconforto são coisas que gosto de explorar. Gosto de senti-lo quando vou ao cinema e tento, pelo menos, passar isso.

 

SH: Achas que existe um terror português? 

Acho. E acho que, se não se criar uma fronteira tão rígida naquilo que é o género, há muitos filmes que podem cair para o lado do que chamamos de terror, muito apoiado, precisamente, no nosso folclore. Nós temos um manancial gigante de histórias; o terror e o amedrontar fazem parte da vida, de séculos a controlar a população através do medo. As nossas lendas, algumas de base celta e muçulmana, mexem com o universo de aproveitar uma entidade para controlar, para dominar. Aproveitam-se do desconhecimento e da ignorância. Estou agora a produzir uma série do Guilherme Branquinho e do Leone Niel relacionada com isso, mas da qual ainda não posso revelar muito.

 

SH: Achas que se vai fazer mais do que aquilo que se tem feito até agora?

Está-se a produzir muito em Portugal, está-se a produzir muito no mundo, mas não se está a produzir bem. O cinema e o audiovisual têm uma missão de desafio, progressiva e de estímulo. E é o nosso papel fazer isso, não é o do espectador. Aquela ideia de espectador-médio, de criarmos um espectador ao nosso gosto para que possamos fazer aquilo que queremos, é basicamente retardá-los intelectualmente. É isto que o cinema e o audiovisual andam a fazer, e isso faz-me alguma impressão. Está-se a produzir muito, mas não se está a produzir com respeito. Uma coisa importante, por exemplo, na série Lusitânia e no Criança Lobo, é o tocarem, às vezes muito ao de leve, em temas que são pertinentes na nossa sociedade. O Criança Lobo toca muito na relação do pai com o miúdo, a violência, aquela ostracização, a não-aceitação do pai, a sobreproteção da mãe. Como tudo aquilo depois se reflete no miúdo pode ser interpretado de milhares de maneiras, mas eu gosto disso. Não é um simples filme de uma criança que se torna violenta. É tudo tratado a correr, eu sei que sim, porque era para ser um episódio. E todos os outros episódios tratam de ir buscar sectores da nossa sociedade que não estão muito representados. Tenho muitos protagonistas mulheres em quase todos os episódios, ou com uma grande importância. E tenho afrodescendentes com muita presença, ou questões ligadas à homossexualidade abordadas com alguma discrição. Acho que a série tem essa função de ter algum contributo minimamente desafiante, progressivo e de estímulo. O entretenimento varia muito de acordo com o grau de informação das pessoas. E acho que estamos a nivelar tudo por baixo, porque é muito mais fácil.

 

SH: A série Lusitânia é uma antologia de seis episódios?

São seis histórias completamente diferentes. Achei que o Criança Lobo, por aquilo que prometia, merecia ser mais do que um episódio, e fiz tudo para que conseguisse ir a sala com um tempo minimamente equilibrado, sem ficar muito extenso. Mas é o que toca mais no género do terror. Todos os outros mexem com algum misticismo, um mais de influência muçulmana, outro mais de influência celta, outros que fogem mais para a comédia.

 

DL: Chamando-se Lusitânia, vai acabar por abranger um pouco de tudo.

Sim, e tudo com base numa recolha de lendas que o Nuno Soler depois adaptou para estes episódios.

 

SH: Em que projetos estás a trabalhar agora?

Um deles, quando li o argumento, fiquei incomodado durante três dias. É um filme muito desconcertante e muito bem escrito. E não posso dar mais detalhes, para já. [risos] Posso adiantar que é escrito pela Rita Roberto e que tem como protagonista uma mulher, que trabalha muito bem o personagem, e o personagem é desconcertante do princípio ao fim.