Entrevista com o «Nelsenstein», autor do conto «Os Dois Terrores», e a sua mãe, Ânia Mendes

«Acho que é preciso a sociedade perceber que há portas que costumamos fechar, mas que, abertas, podem contribuir para uma sociedade melhor»

Em abril, a Fábrica do Terror recebeu uma mensagem via redes sociais que encheu o coração de todos os Operários. A mãe de um adolescente, o Nelson, enviou-nos uma mensagem a agradecer a existência da Fábrica. 

Recentemente diagnosticado com transtorno do espectro autista (nível mais ligeiro), o Nelson tem um interesse especial pelo terror, mas, na zona onde vive — ilha das Flores, Açores — não existe muita literatura disponível.

A Fábrica veio ajudar o Nelson a descobrir mais sobre o mundo do terror, a aprofundar os seus conhecimentos e, inclusive, a partilhar connosco o seu próprio conto de terror. Isto porque o Nelson encontrou na escrita de terror uma forma de expressar as suas emoções.

Se alguma vez tivemos dúvidas sobre o porquê de existirmos, esta mensagem veio dissipá-las e dar-nos mais força para continuarmos o nosso trabalho, tornando este portal de terror português uma referência nacional.

Por ter sido um momento tão especial e tão marcante para a Fábrica, decidimos conhecer melhor o Nelson e a sua mãe — Ânia —, para que os conheçam também.

De Telma Cebola

***

 

Qual o impacto que o terror teve e tem na vida do Nelson?

Ânia: Ele sempre teve interesses muito peculiares, desde pequeno. [risos] A primeira vez que me lembro de perceber que ele [gostava] de algo a que eu não estava muito habituada foi quando ele começou a gostar mesmo muito de Five Nights at Freddy’s. Achei aquilo assim um bocado hardcore para a idade [dele]. Ele tinha se calhar 8 anos, e eu pensei: «OK, mas isso é um bocado estranho». [risos] Mas pronto, ele gostava. Eu sempre dei um bocado de espaço e de autonomia às preferências deles [Nelson e irmãos], tentando sempre perceber o contexto. Aquilo fez com que ele começasse a desenvolver muito o imaginário na perspetiva dele, com a narração dele, e eu pensei que, por muito bizarro que fosse, sempre trabalhava a imaginação. Acabava até por alinhar também e puxava pelas personagens, pela narrativa, porque percebia que isso acabava por lhe fazer bem. Esse foi o primeiro interesse que eu me lembro. Depois, percebi o impacto que o Frankenweenie teve nele. Viu aquele filme montes e montes de vezes. E o Pesadelo em Elm Street, e o Shining, e o Texas Chainsaw Massacre — de que eu nunca tinha ouvido falar —, e ele gostava das kill counts. Sempre percebi que era um mundo que o fascinava. Isto também porque ele teve um fascínio mais sci-fi pelo Predador e pelo Alien vs Predador, que, para 8/9 anos, já era assim um bocado hardcore. Mas ele adorava e sabia aquilo tudo. Eu também não sou uma pessoa de fechar a mente seja ao que for, vou sempre contextualizando.

Como é que ficaste a conhecer a Fábrica do Terror?

Ânia: Foi numa conversa casual com a diretora de turma do Nelson. Ele está num curso profissional de cozinha e, tendo em conta o quadro psicológico dele — começou em setembro e só em outubro é que tivemos o diagnóstico dele, e mexe um bocado com as ferramentas que se usam na cozinha —, estávamos sem saber se ele ia fazer o estágio. Nessa reunião, disse: «mesmo que ele não faça o estágio, [que] seja só para fazer o 9.º ano, porque o grande sonho dele seria fazer um livro e um filme de terror». E ela disse-me: «não sei se conheces, mas, no mês passado, houve uma senhora de cá, mas que está no continente, que deixou um livro de terror [Sangue Novo] aqui na biblioteca, e ela criou agora uma editora dedicada a esse género literário» — e nós estamos na ilha das Flores, que é aquela ilha minúscula que não tem um semáforo sequer, não tem escadas rolantes, não tem um prédio [risos]. Então, eu disse: «olha, nunca ouvi falar e não fazia ideia de que havia esse livro na biblioteca». Mas, dessa conversa casual, surgiu essa dica. E, claro, [quando] cheguei a casa, falei disso com ele, fui logo ao Facebook procurar e cheguei à Fábrica do Terror. E foi totalmente inesperado. Não estava nada à espera que, daquela conversa, surgisse isto. Ele requisitou o livro no dia seguinte e leu-o logo nessa tarde. Foi assim que eu cheguei à Fábrica do Terror. Fiquei muito surpreendida, mas agradavelmente surpreendida, positivamente surpreendida, porque disse: «ah, espera, afinal há realmente um mundo com pessoas que escrevem e com pessoas que leem e com pessoas que também se fascinam por isto». Foi muito bom. Eu sempre disse ao meu filho que nunca me arrependo de falar a mais, prefiro falar a mais do que a menos. Às vezes, tenho boas novidades quando falo sobre as coisas.

Sentes que algo mudou depois desta descoberta? De que forma?

Ânia: Completamente! Aliás, ele começou a escrever o conto dele nessa tarde. Falava disso há muito tempo, e falava das personagens, da história, do que eu achava dos nomes. Ele falava-me já de tudo, mas ia sempre adiando, porque tinha de ver melhor isto e aquilo. E eu disse: «é só começar, depois as palavras fluem, a escrita flui assim que começares». Mas, de repente, foi nessa tarde que ele começou a escrever, e acho que escreveu até já ser de noite. Até aí, o impacto foi muito bom. Depois, ouviu também falar do MOTELX. Foi a partir daí que ele começou a pôr mais no papel a criatividade dele. E, já que estou a falar pessoalmente, gostava de agradecer pela maneira como abraçaram isto tudo e como nos acolheram. Nesta correria toda dos meus dias, vocês foram sem dúvida uma coisa que me deu energia para cima e muito alento, porque percebi o impacto que teve nele. Fico-vos muito agradecida por isso. Ele vai continuar a escrever, e a mostrar, e a pedir feedback e opiniões. Pelo menos, ao MOTELX ele vai ter de ir [risos]. Há de acontecer! [risos]

Qual foi o teu primeiro contacto com o género do terror, Nelson?

Nelson: O primeiro filme que vi do género de terror foi o Frankenweenie. E eu costumava ler BD, antigamente. Acho que o primeiro livro de terror que li foi o do Pesadelo em Elm Street. E Death Note, também li Death Note. Outras coisas de terror são, por exemplo, os animes Tokyo Ghoul ou The Promised Neverland. Isso fez-me perceber que há outras maneiras de expressão. Eu ia ver os criadores dessas coisas e parecia-me totalmente normal. Depois, vejo-me a escrever e vejo que é normal.

Quais são as tuas referências na escrita ou no cinema?

Nelson: O meu livro preferido talvez seja o Sangue Novo. Gosto bastante do Sangue Novo. O meu conto preferido é o primeiro [«Pestinhas», do Cláudio André Redondo]. O meu filme de terror favorito é o Texas Chainsaw Massacre.

Como te sentes a escrever terror?

Nelson: Para ser sincero, acho que escrever livros de terror, para mim, é um pouquinho de escape saudável para a violência. Eu gosto bastante, faz-me sentir realizado. [Sinto que estou a pôr no papel] o que está por dentro.

Ânia: É engraçado. Uma das coisas que senti foi que, à medida que ele começa a pôr cá para fora esse dark side, esse dark mind, ficou muito mais leve. Fiquei mais tranquila. Senti que a luz dele era uma luz muito inquieta, muito nervosa e ansiosa. Não tinha aquela consistência de estar acesa e estar presente. Isto foi falado também com a psicóloga, no sentido de ver até que ponto é que não seria quase «obrigatório», para ele, passar da ficção à realidade. E eu falei muito sobre isso [com ele]. «Tens de ter muito cuidado com isso, temos de conversar e tens de entender que isso é mesmo o limite da imaginação, que o que vai dentro da tua mente não pode nunca materializar-se cá fora.» E ele percebe que, dentro da ficção, não há condenação. Pode cometer todos os crimes ou todo o terror que queira que não há condenação palpável. Enquanto na realidade, nesta parte material e palpável, isso iria acontecer. Portanto, senti que ele ficou muito mais tranquilo. Acalmou muito mais esse lado dele, de raiva e de frustração interior, com muitas coisas que não conseguia gerir emocionalmente nos outros. Sinto que isso o aliviou bastante nesse sentido.

E quais são os teus objetivos na escrita? Pretendes continuar a escrever neste género? 

Nelson: Quero continuar a escrever. E um dos meus objetivos é projetar o meu livro ou os meus livros para cinema, para um filme. Quero [realizar também]. O que queria era escrever alguns livros que tenho em mente, para realizá-los e expor algumas das minhas ideias a escritores e realizadores de cinema.

Há pouco falavas sobre o diagnóstico do Nelson. De que forma é que este quadro influencia a vida dele, como adolescente e como escritor?

Ânia: Tivemos os resultados de um pedido de análise genética e, efetivamente, há uma duplicação de um gene X e de um gene Y. Esta duplicação aparece numa das várias tabelas que existem sobre genética, numa amostra onde outros indivíduos com uma duplicação idêntica, aparecem também com diagnóstico de autismo e dificuldade de aprendizagem. Eu e o meu marido temos de fazer testes também, para saber se vem do pai ou da mãe, ou de ambos. E, portanto, aparentemente também há uma base genética. No entanto, o transtorno do espectro autista divide-se agora em cinco escalas, desde o mais severo ao mais leve. A psicóloga da escola disse-me: «veja isto tudo entre o Asperger e o Alto Funcionamento, porque ele tem características dos dois». Então, sempre foi de um enorme sofrimento ele fazer amigos na escola. Sempre. Sempre horrível. E se já em criança era muito awkward, digamos assim, em adolescente tornou-se ainda mais. Além de ser difícil, tornou-se violento. E aqui, nas Flores, chegou mesmo a ter violência física, não só o bullying psicológico. Foi quando chegou a esse ponto que a psicóloga da escola o acompanhou entre novembro e maio. O diagnóstico dele chega aos 14 anos e meio. Por exemplo, eu sempre achei estranho ele recusar-se a tocar flauta, a aprender e a ouvir o irmão, mas não entendia. Foi a psicóloga que me disse que era o barulho, que há um certo tipo de sons e de  instrumentos que causam estímulos sensoriais e lhe fazem muita confusão. No meio disto, também veio a série Atypical. Ele viu comigo a primeira temporada e reviu-se imenso nela. Ele tem dificuldade [com o sarcasmo], o que torna muito difícil o entendimento com os adolescentes da idade dele. Depois, acho engraçado que o diagnóstico dele tem muito a ver com a dificuldade que ele tem em conseguir ler as expressões nos outros. O que faz com que seja muito difícil de ler comportamentos, ou de reagir adequadamente a eles. No entanto, quando ele escreve, tem toda uma capacidade e uma simplicidade de transcrever as emoções de uns para os outros. Por exemplo, ele tem 16 anos, mas, quando brinca com o meu filho de 5, às vezes parece que é da mesma idade. Tem este gap de comportamento. Como as crianças pequenas, não tem filtro.

Isso, por um lado, também tem uma parte positiva, que é a leveza e a sinceridade que vem do Nelson, e que não se encontra facilmente noutras pessoas.

Ânia: Não há ninguém mais leal e honesto. Mas depois não consegue perceber o feedback que recebe.

Mas na escrita, como estavas a dizer há pouco, Nelson, sentes que já consegues escrever sobre as emoções? Ajuda-te?

Nelson: Ajuda-me bastante. É um processo complicado. Eu tento sempre pensar, fico muito tempo a pensar e começo a estudar as outras pessoas. Uma coisa que gosto de fazer é estudá-las emocionalmente e depois usar o que aprendi para meter no livro. Isso pode ser um pouquinho estranho, mas eu acho que me ajuda muito.

Achas que te ajuda a conhecer melhor as pessoas, ao fazeres essa análise para passares para o livro?

Nelson: Sim.

Ânia: Eu tentei ensinar-lhe muitas vezes as «máscaras» que temos de usar. E ele perguntava-me: «mas porque é que eu não posso dizer?». Eu também não sei explicar. Aprendi que sim, mas também não percebo. [risos]

Nelson: Eu sou um pouquinho mau com, neste caso, entrevistas. Sou um pouquinho mau a socializar e a ter conversas com pessoas [a não ser que sejam adultos]. Com adultos, eu fico bem, socializo bem, falo bem. Como muitos dos meus colegas me dizem e como já me disseram até hoje, eu sou bastante maduro para a minha idade.

Ânia: Não sei se [há pouco] fui clara em relação ao diagnóstico.

Nós também não queremos estar aqui a desenvolver muito. Queremos que as pessoas, obviamente com a vossa permissão, percebam que a escrita pode ser uma forma de «salvação», pode ser uma forma de ajudar pessoas que tenham o mesmo transtorno. Crianças e adolescentes que vejam no exemplo do Nelson uma forma de também passarem para fora as coisas que sentem.

Ânia: Sim, por exemplo, ele tem o transtorno de espectro autista associado à psicose e à perturbação depressiva. A psicose tinha a ver com as vozes. Ele uma vez disse à psicóloga da escola que ainda tinha amigos imaginários. E ela falou-lhe do [Fernando] Pessoa. E eu lembro-me de ele dizer, quando criou os irmãos do conto, que os ouvia a falar. Claro que a medicação também é para isso tudo entrar em equilíbrio, para o cérebro se reequilibrar quimicamente e isso ser mais ténue e não overwhelming. Mas há muitos quadros. Eu, por exemplo, quando escrevo mais, é por estar em completo tilt mental. E acho que, sempre que estamos num quadro mais depressivo ou com mais tendência para não conseguirmos organizar-nos, a escrita é um escape muito grande. Neste caso, se for um dark side que precisa de sair, há o terror… Eu também estou agora a ver mais, a ler mais, a perceber o impacto. Acho que pode realmente ser uma ajuda. Não precisa de ser uma coisa má, nem negativa, de assustar as pessoas nesse sentido. As pessoas podem experimentar e, se virem que realmente é uma coisa boa, passar por cima dos conceitos e dos preconceitos da sociedade. E depois, com vocês, perceber que existe todo um mundo que pode ser explorado a esse nível. Acho que é preciso a sociedade perceber que há portas que costumamos fechar, mas que, abertas, podem contribuir para uma sociedade melhor.

Uma última pergunta, porquê «Nelsenstein»?

Ânia: Estávamos à procura de um pseudónimo, dentro do terror. Pensámos em Nelson Krueger pela dimensão que o Freddy tem, mas, de repente, vimos um boneco que ele recebeu no Natal, um [monstro de] Frankenstein. Ele foi operado aos ossos do crânio quando tinha 9 meses e levou 73 agrafos na cabeça. Só havia uma possibilidade: Nelsenstein!

 

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Esperamos que tenham gostado de conhecer o Nelson e a Ânia tanto quanto nós, que gostem do conto que o Nelson submeteu à Fábrica e que, a partir de hoje, estejam atentos ao Nelsenstein, um promissor autor de terror em Portugal.

 

 

Os Dois Terrores

Texas Coli era um pequeno hotel com uma classificação de duas estrelas e meia, perto de uma pequena cidade chamada Nailstone. Atrás dele, havia uma floresta.

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