A autora Susana Silva falou connosco sobre a sua «escrita diferente» e os primeiros contos publicados

«O meu terror é mais a assombração do tempo a passar»

Não se considera «de Letras», uma vez que a sua carreira profissional é na área de Ciências, mas sente que os seus dois lados convivem em harmonia. O conto «O Palco Vazio», na antologia Sangue Novo, marcou a estreia de Susana Silva como autora publicada em 2021, e, em 2022, prepara-se para ver lançada mais uma antologia com um conto seu. Para Sangue, editada pela Trebaruna, Susana escreveu o conto «Icor».

Falámos sobre o seu processo criativo, livros que são de terror apesar de não estarem classificados como tal e aquilo a que ela chama de a sua «escrita diferente».

Der Sandra Henriques

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Como é que chegas ao terror, qual é o teu primeiro contacto?

Quando era pequenina, costumava alugar muitas VHS de filmes típicos de terror, como o Pesadelo em Elm Street, Sexta-Feira 13. Acho que foi aí que começou. Lia quando era mais nova, mas comecei a ler mais quando entrei na faculdade.

E o que é que leste primeiro, recordas-te?

De terror? Que eu soubesse que era de terror, acho que a primeira coisa deve ter sido um livro da Anne Rice. Acho que foi o Entrevista com o Vampiro, depois de ver o filme.

Agarrando nessa questão de «livros que sabias que eram de terror», diz-me um livro que tenhas lido que só descobriste mais tarde que até podia ser de terror.

Para dizer a verdade, nunca peguei num livro e pensei: «isto é de terror ou é de outra coisa qualquer». Simplesmente lia os livros porque sim. Costumo sempre ler a primeira frase e a última frase para ver se gosto. Se gostar, compro o livro. Um livro que eu não soubesse que era de terror… Talvez A Metamorfose, do Kafka. Para mim, aquilo era um livro normalíssimo, se calhar um bocadinho estranho, mas não o associava a terror. Quando fiz o curso de Escrever Terror, estava na bibliografia como um livro de terror.

Falando do curso, que foi quase o teu ponto de partida para a escrita de terror, já escrevias antes de fazer o Escrever Terror?

Sim, escrevia o mesmo que escrevo agora, mas nunca lhe chamei terror. Se calhar, agora, é um bocadinho mais acentuado. Noto muita diferença. Antes, escrevia mais sob a forma de, vamos chamar-lhe, poesia. Não tinha história, mas as temáticas eram exatamente as mesmas. Agora, acho que evoluiu um bocadinho para uma coisa mais incompreensível. [risos] Evoluiu bastante, mas antes escrevia mais no sentido de pensamentos, descrição de imagens, sempre à volta desse aspeto, desses temas.

Eu acho que tens uma linguagem e um estilo muito próprios. É como disseste no lançamento do Sangue Novo, que a tua escrita é um bocadinho diferente. Mas isso é bom sinal! Tens também um conto que vai ser publicado na antologia Sangue. Achas que foi um risco que correste, por ser «diferente»?

Sim, foi um risco, mas o meu pensamento foi: «não vou deixar de escrever como escrevo; se não for aceite, vai para o meu livro».

E como é que está a correr esse projeto do teu livro?

Queria que estivesse pronto em menos de um ano, mas não sei. Está a andar muito devagarinho. Como estive a escrever o outro conto, o livro ficou em standby. Vão ser sete contos, em que o conto central vai ser sob a forma de poesia.

Entre a altura em que foste convidada para integrar o Sangue Novo e agora, o que é que mudou? Que expectativas tinhas na altura e que expectativas tens agora? Se é que mudou alguma coisa.

Não tinha expectativas. [risos] Quando o convite surgiu, pensei: «isto não é real». Nem no dia do lançamento do livro acreditava que isto tinha acontecido. [risos] Não sei explicar, não me parece real. Mas não tinha expectativas nenhumas. Mesmo agora, a enviar este conto para esta antologia, não tinha expectativa nenhuma. Até pensei: «a minha escrita é demasiado estranha, isto nunca vai ser aceite num livro normal». Quando recebi a chamada, foi fantástico. Porque na outra antologia [Sangue Novo] fomos convidados e nesta não, é diferente. Não querendo dizer que foi menos ou mais, mas é diferente. Até pensei em não participar porque achei que o meu conto nunca ia ser escolhido. E custou-me bastante a escrevê-lo. Enviei-o no penúltimo ou último dia [do prazo] porque me faltavam dois parágrafos pelo meio para ligar as coisas. Porque eu escrevo um bocadinho em cada lado, vou escrevendo pelos meios. Não escrevo de uma forma linear, não consigo.

O que produz um estilo muito próprio. 

Houve uma altura em que pensei que queria ser igual aos outros. [risos] Porque ninguém percebia as minhas histórias! Para mim, é sempre tão claro, mas as outras pessoas geralmente não percebem.

Já te disse isto antes, as tuas histórias são como os filmes do David Lynch, não percebes à primeira. Quando leio uma segunda ou uma terceira vez, já estou a fazer uma interpretação completamente diferente. O que não é mau de todo! E a escrita de terror não tem de ser uma coisa que se perceba à primeira. Continuo a dizer-te que os teus contos deviam ser adaptados ao cinema ou ao teatro. Isso é intencional quando escreves?

Sim, é. Eu vejo [a história] sob a forma de teatro, tanto que chamo atos aos meus capítulos. Porque os vejo como se fossem peças de teatro. Normalmente, só existe uma personagem, ou duas, ou três. E porquê às vezes só uma personagem? Porque eu adoro monólogos. É daí que vêm os contos com poucas personagens. Se bem que os meus contos não têm diálogos, nem monólogos. Basicamente, é só descrição.

Quando leio os teus contos, leio como monólogo interior.

Sim, são monólogos interiores.

É uma coisa muito minimalista, mas são descrições muito focadas também. 

Às vezes, penso em pôr «palha», mas não consigo! É um problema!

Eu gosto que tu não te prendas. Vais continuar a escrever neste registo, de terror? Se calhar, não lhe chamas terror…

Eu não lhe chamo nada. Eu chamo-lhe aquilo que escrevo. [risos] Se isso se encaixa no terror, então ótimo, encaixa-se nalgum sítio. Mas não categorizo como isto ou como aquilo.

E esse vai ser sempre o teu estilo, mas achas que, a dada altura, vai ser complicado encontrares uma editora que perceba o teu estilo? Claro que podes optar por uma edição de autor.

Acho que sim, que vai ser difícil. Mas tenho esperança de que não seja. Porque é uma escrita diferente e provavelmente vai ser daquelas coisas que ou as pessoas gostam ou não gostam nada. É uma vantagem e uma desvantagem.

Agora, com o Sangue, vais ter experiência de estar a trabalhar com um editor com quem nunca trabalhaste antes. Com o Pedro [Lucas Martins], tínhamos uma vantagem, mesmo que nunca tivéssemos trabalhado com ele como editor, ele era nosso formador. Havia ali outro tipo de ligação. Estás com receio disso? Talvez receio não seja a palavra certa…

Sim, mas estou. Porque tenho medo que queiram alterar algumas coisas, no sentido da maneira como escrevo. Tenho medo que tentem tornar o texto mais acessível. Mas acho que não é isso que vai acontecer. Por um lado, tenho receio. Por outro, acho que não me tinham escolhido se não tivessem gostado do texto.

O Sangue vai ser lançado na Feira do Livro de Lisboa [em 2022], o que vai ser um bocadinho diferente do lançamento do Sangue Novo, onde estavam muitos amigos e família. Como é que achas que vai ser esta experiência?

No lançamento do Sangue Novo, eu já estava nervosa, quando comecei a ver aquelas pessoas todas. Neste, acho que vou estar mais. [risos] Se bem que, como é uma antologia cujo tema é sangue, não sei quantas pessoas vão lá estar, mas há sempre aqueles curiosos. Não vou falar muito, [provavelmente] vou ler um excerto do meu conto, mas acho que vai ser super grande.

Nem que seja por ser uma edição «tradicional». Achas que isso é diferente?

Para o Sangue Novo, fomos convidados. Aqui, foi diferente, mas, para mim, é igual. Continuo a não acreditar que nenhuma delas aconteceu, por isso, para mim, são as duas iguais. [risos]

Excerto de

L’Appel du Vide

de Susana Silva

O vazio oco inunda-me.
Oiço-o a corroer-me,
A mim,
Aos meus ossos,
A murmurar em silêncio,
Enquanto toca cada célula minha,
Quebrando cada átomo
E o preenche com o não-ser,
Lentamente, tão lentamente.
Hoje, as pernas, aos poucos,
Cheias daquele branco amorfo infinito.
Arrasto-me neste chão velho.

Cravo mais uma tábua. 

Para quem estiver a ler esta entrevista e que considere que tem uma escrita «diferente», o que é que dirias a essa pessoa?

Eu diria para continuarem a escrever. Porque eu tive muitos problemas com a maneira como  escrevia, principalmente quando começámos a frequentar o Teias de Aranha, e ficava bastante triste quando as pessoas não percebiam os meus textos. Mas eu tinha duas hipóteses: ou ficava em paz com a maneira como escrevia e percebia «não, isto é diferente e as pessoas gostam, apesar de não perceberem a história» ou então tentava escrever de outra maneira. E eu não consigo escrever de outra maneira. Podia tentar, mas iria ser muito difícil, no sentido de demorar mais tempo. Por exemplo, eu não gosto de escrever diálogos. Sejamos sinceros, também nunca tentei escrever um texto «normal», com diálogos, com princípio meio e fim, nunca tentei a sério. Mas é, vamos dizer, doloroso para mim, porque demoro muito tempo. Não que não demore muito tempo a escrever da maneira como escrevo agora. Não sai naturalmente, às vezes, mas acho que o outro tipo de escrita ainda ia demorar mais tempo. Não costumo ter muito tempo para escrever e não escrevo tão frequentemente como deveria. Mas diria para continuarem a escrever como escrevem. Há sempre público. O problema, às vezes, é ser aquele tipo de escrita de nicho, [o que] pode ser uma vantagem, porque, para esse nicho, vai sempre haver público e vai sempre haver escrita, mas pode ser uma desvantagem se quiserem fazer dinheiro com a escrita. [risos]

Às tantas, é um compromisso entre querer fazer dinheiro ou escrever o que te apetece.

Eu quero escrever o que me apetece!

E qual é o teu processo criativo? Quando estás a pensar numa história, o que é que te vem à cabeça primeiro? O texto, uma imagem…

Depende. Normalmente, preciso de uma ideia para a história. Por exemplo, para o conto do Sangue, estava completamente sem ideias, e foi no caderno do curso de Escrever Terror que [encontrei inspiração]. Eu preciso sempre de uma frase para começar [a escrever]. A primeira frase desse conto vem de um poema italiano. Assim que tenho a primeira frase, consigo começar. Depois, há outros contos em que preciso dos títulos, e não consigo começar a escrever sem um título. Agora, para o meu livro, não comecei a escrever mais nada porque aproveitei muitos contos que já tinha, mas tinha de ter os títulos todos para o livro e para os contos. Depende muito.

Nunca começas pelo fim?

Algumas histórias começo pela frase do fim. Não tenho uma forma de escrever «normal». Preciso da frase para começar e depois escrevo aleatoriamente.

Tu dizes que é aleatório, mas constróis a narrativa. A construção da narrativa está lá.

Por isso é que estive muito tempo para arranjar aqueles dois parágrafos que faltavam para juntar coisas — por causa disso, por ser aleatório. Eu não consigo escrever tudo de seguida. Depois, farto-me de uma parte e vou escrever outra. Vou saltando dentro do capítulo e entre capítulos.

Alguma vez terminas o texto e pensas que não era nada disto? Ou a partir do momento em que entregas o texto pensas que está fechado?

Acabo, revejo só para ver se faz sentido na minha cabeça e em termos de metáforas. Se fizer sentido, fica como está. Às vezes, posso melhorar uma ou outra frase. Quando tenho frases «normais», mudo, porque estão a destoar do resto do texto. Porque tenho muita dificuldade em escrever! Primeiro, não sou de Línguas, sou de Ciência. Talvez a minha forma de escrever seja um escape para a minha dificuldade em escrever em português correto. Talvez seja um escape para isso.

O que não é de todo mau. Achas que o teu trabalho científico te ajuda de alguma forma na escrita ou são duas Susanas completamente diferentes?

Não, eu sou caótica nas duas coisas! [risos] Não consigo ser organizada em nada. Sou caótica no sentido em que estou a pensar em mil e uma coisas ao mesmo tempo, mas no trabalho preciso de ser um pouco mais metódica do que sou na escrita. Depende do ponto de vista, porque a [minha] escrita também pode ser metódica.

Alguma vez pensaste em cruzar as duas coisas? A tua experiência científica com a escrita?

Nunca pensei, porque os temas que trato na escrita e sobre os quais gosto de escrever [são diferentes]. Os meus contos prendem-se com o conceito de tempo e da perceção que o tempo passa. Nesse aspeto, o meu tipo de terror também é um bocadinho diferente. Às vezes, tem lá outros aspetos, mas o meu terror é mais a assombração do tempo a passar, a melancolia do tempo que passa. E é uma coisa minha, uso os meus contos para escrever os meus medos. Normalmente, escrevo a ouvir música que leva ao fundo, porque preciso de estar naquele estado para conseguir escrever. Por isso, não conseguiria juntar as duas coisas.

São mundos completamente diferentes.

Sim, um deles é o meu lado, digamos, racional e o outro é minha parte emotiva, que não se juntam.

Vês os teus contos a serem adaptados a outros formatos?

Acho que ficariam bem num estilo de animação. Não sei explicar porquê, mas na minha cabeça, quando leio os meus contos, penso naquele estilo de animação a preto e branco, com pouca cor. Cinema não sei. Teatro seria estranho, mas talvez fosse uma daquelas coisas que ou as pessoas adoram ou odeiam. [risos] Animação acho que seria interessante, acho que sim.