Crítica a «Será de Madrugada», de Raquel Fontão
Na sua obra de estreia, a autora pega no conceito de casa assombrada e utiliza-o para explorar bem mais do que quatro paredes.
No livro de quase 300 páginas, Raquel Fontão coloca João, a sua personagem principal, numa investigação paranormal, que tem tudo para correr mal.
Quando planeei ir à apresentação da obra no Fórum Fantástico, já tinha o livro debaixo de olho por causa da capa, que é maravilhosa. Não esperava, no entanto, que o elemento que, de facto, me convenceu a comprar o livro fosse a forma como a autora funde a sua paixão pela música com a obra que acaba de largar ao mundo, especialmente depois de a autora ler um dos capítulos que me arrepiou dos pés à cabeça.
Não é uma experiência muito comum para mim ler um livro em que o prólogo me deixe tão estupefacta como o de Será de Madrugada (Grupo Editorial Divergência). Cruzando o horror puro e sangrento com o horror das entrelinhas da psique humana, será difícil para qualquer pessoa não continuar a sua leitura.
Daí, seguimos a história de João, um músico em dificuldades financeiras, com um trabalho odioso e demasiado gosto pelo álcool, perdido entre o que poderia ser e aquilo que o seu pai lhe disse que seria.
Quando João recebe a oportunidade de uma vida — ainda por cima, na Argentina, a terra do tango! —, não hesita: afinal, não tem nada a perder.
O que João não esperava era que o trabalho envolvesse uma investigação paranormal na hacienda Romero, cuja família conheceu tragédia atrás de tragédia, apresentando, ainda assim, uma aparente conexão com aquela casa que vai para lá do que é normal.
As coisas estranhas acontecem logo desde o início e, claro, não nos podemos esquecer de que, no fundo, estamos perante o conceito tão bem conhecido de casa assombrada, esta quase se tornando uma personagem principal. A hacienda serve sempre como um imponente fundo de história, literal e figurativamente. No entanto, Será de Madrugada consegue, muitas vezes, fugir aos clichês mais expectáveis, equilibrando de forma algo genial o previsível com algumas reviravoltas inexplicáveis.
Confesso que senti que a obra poderia ter mais corpo se algumas personagens em particular fossem mais exploradas, de modo a que percebêssemos melhor as suas motivações. Também houve alguns momentos em que a autora nos poderia ter mostrado certas coisas em vez de as contar (o tal show, don’t tell), mas, considerando que esta é a estreia na publicação tradicional de Raquel Fontão, não estou, de todo, zangada com estes elementos, que acredito poderem ser um reflexo de alguma inexperiência.
É importante fazer uma breve nota em relação ao trabalho editorial de revisão e edição da obra, que apresenta vários lapsos evitáveis, embora os mesmos não impeçam o envolvimento do leitor na história.
E não deixem que estes aspetos menos positivos vos impeçam de investir na leitura de Será de Madrugada! Os elementos mais apetitosos do terror estão lá, desde sons a aparentes ilusões, pessoas com reações questionáveis e uma mistura muito equilibrada entre o passado e o presente, que nos vai permitindo conhecer a própria hacienda, ao mesmo tempo que aguça a nossa curiosidade.
Raquel Fontão conseguiu, de forma aparentemente simples, conectar o horror cru com a essência do ser humano, levantando imensas questões sobre o luto, a maternidade, o amor, o ódio e a vingança, sem tratar o leitor como alguém que precisa de ser ensinado. Os elementos estão lá — cabe-nos tirar algumas ilações e fazer as conexões entre as mesmas, as personagens e os significados de cada cena.
Mais do que uma boa surpresa, Será de Madrugada é uma lufada de ar fresco na publicação tradicional e prova adicional de que o terror em português está vivo e bem de saúde — só precisa do destaque que é dado a tantos outros géneros.
Não posso deixar de recomendar (veemente!) a leitura da obra de Raquel Fontão, e sei, de fonte segura — que é como quem diz: fui pressionar (sem pressão) a autora através do seu bookstagram —, que a próxima obra já está a caminho. E mal posso esperar por tê-la nas minhas mãos.
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Laura Silva
Apaixonada por histórias desde 1992, é escritora nas horas vagas e pasteleira aos fins-de-semana. O gosto pela leitura deu muito jeito para a licenciatura em Direito, mas agora é constantemente abordada por amigos e familiares para consultoria jurídica gratuita. Extremamente traumatizada em criança pelo Cadeirudo, acabou por aprender a gostar de todas as facetas da ficção especulativa, que hoje se revela o seu género favorito.