Coleção «Felizes Viveram Uma Vez», de Filipe Faria
Algo correu mal nos contos de fadas, e cinco figuras do folclore partem em busca de respostas.
Nesta distopia folclórica da Editorial Presença, um «mundo virado do avesso», algumas personagens dos contos de fadas unem-se com um propósito comum: encontrar o final feliz das suas histórias.
Recomendado para 15+
Os contos populares fazem parte do nosso imaginário e, desde que a tradição oral foi transcrita para o papel, sofreram diversas adaptações ao longo do tempo.
Se com os irmãos Grimm e Charles Perrault havia uma preocupação em transmitir lições e ensinamentos através de finais trágicos e até macabros, a partir do século XX, por mão da Disney, quis-se aligeirar o terror e proteger as crianças do conteúdo forte, introduzindo finais cor-de-rosa.
Seguindo a corrente de escritores estrangeiros que recontaram os contos de fadas ao contrário, o autor Filipe Faria apresenta-nos um enredo repleto de maldade, de perversidade, de azares da vida, transmitindo-nos uma sensação desconcertante de caos e de mau agoiro.
O Perraultimato, o primeiro volume da coleção «Felizes Viveram Uma Vez», é uma leitura de ritmo acelerado, com muita ação, na qual os protagonistas são introduzidos. As ilustrações de Pedro Potier complementam a escrita rica e cuidada do autor Filipe Faria, realçando os momentos mais importantes de cada capítulo.
Circunstâncias do destino reúnem um grupo de desconhecidos numa demanda (ao jeito de aventura épica) que visa deslindar o mistério de as suas «estórias terminarem de forma tão amarga». O facto de as respostas se encontrarem na forma de versos crípticos ― o Perraultimato, legado da Mãe Gansa ― não abona a favor da tarefa complexa de retificar os finais. O «felizes para sempre» é mais difícil de alcançar do que pensavam.
Desprovidos da inocência que os caracteriza nos contos tradicionais, os intervenientes desta saga não são, porém, como nos recordávamos.
Capuchinho, a menina pura conhecida por levar uma cesta à avó, é apresentada como uma «lobijovem» irreverente, cuja maldição não afetou o seu sentido de humor ou sensualidade. Os momentos picantes e cómicos trazidos por esta personagem enriqueceram a narrativa.
Mama-na-Burra também conferiu leveza à história, pelo nome caricato (cuja origem é ainda mais engraçada) e pela forma desconfiada e desajeitada como age. É um guerreiro pouco recompensado pela bondade e pelos feitos heroicos.
O mesmo sentimos em relação ao obstinado Borralheiro. Tem bom fundo, resolve os problemas do grupo e apela à união, mas não consegue ser herói da sua história. É um insignificante Terceiro Filho que nem uma princesa consegue conquistar. É ele que sente que «algo de profundamente errado se passou, e o único que se predispõe a ir em busca de respostas», convencendo os outros.
O desgraçado Aprendiz (de feiticeiro), por sua vez, não chega a aprender com o mestre, pois condenou-o inadvertidamente à morte. Em compensação, tem o poder de invocar e controlar espíritos, mas a que preço? Eles dão uma ajudinha quando é preciso, é verdade, mas nem sempre as coisas correm de feição.
Por último, Vasilisa é uma personagem trágica e atormentada (não serão todas?) que não soube aproveitar as oportunidades. A sua história é semelhante à da Gata Borralheira, com uma espécie de Fada Madrinha muito peculiar. A jovem tende a isolar-se das pessoas, refém de uma maldição perigosa para quem dela se aproxima.
Com Borralheiro, «rodeado de companheiros que tanto o podem matar como ajudar», transitamos, com grande expectativa e uma réstia de esperança, para O Andersenal. O segundo volume da coleção não tem ilustrações e centra-se nas reflexões e pensamentos das personagens. As introspeções desaceleraram o ritmo a que nos habituámos no primeiro volume, mas revelaram pormenores importantes das personagens.
Todos os caminhos levam os cinco protagonistas (pelos quais torcemos fervorosamente) ao palácio da Rainha da Neve, onde se encontra a segunda peça das instruções enigmáticas da Mãe Gansa.
O Ladrão e o Diabo são antagonistas que atrapalham o grupo, tentando impedi-los de serem bem-sucedidos. E quando os nossos anti-heróis finalmente se apercebem da realidade das suas circunstâncias e de que o mundo em que vivem não é como pensavam, avoluma-se uma tarefa ainda mais difícil: ir à Lua.
O final desta saga não chegou ainda.
O autor deixou-nos na espera de um terceiro volume que trará o tão aguardado desfecho desta fantasia negra, repleta de ação e de terror, com mortes descritivas e desgraças a espreitar ao virar da página.
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Marta Nazaré
Marta Nazaré, nascida em Lisboa, a 5 de março de 1981, é formada em Letras e Tradução de Inglês. Dedica-se a tempo inteiro à tradução de livros infantojuvenis e à legendagem de filmes e séries.
Descobriu o terror em tenra idade na papelaria do bairro que vendia a coleção «Arrepios», de R. L. Stine. Ainda hoje, o terror infantojuvenil é o seu género preferido.