Crítica a «Homem ou Besta: O Moderno Frankenstein» (2024), de André Filipe Fragoso
Homem ou Besta reflete sobre a condição humana, o significado de monstro e, acima de tudo, de palhaço.
Procurando criar um Frankenstein no contexto português, André Filipe Fragoso trabalha o conceito da sombra que existe dentro de cada ser humano e que deve ser aceite para que se possa encontrar a luz. Caso não aconteça, as consequências serão catastróficas…
O autor de Homem ou Besta estabelece um diálogo com outros escritores e pensadores ao longo do texto, evocando-os explicitamente em notas de rodapé. Fernando Pessoa, Mary Shelley e Carl Jung são os seus principais interlocutores. Estes escritores destacam-se pelo seu trabalho sobre a melancolia, a loucura, a solidão, a ambição desmedida e as trevas da alma humana. No seu livro, Fragoso aborda todos estes temas, convergindo-os na personagem principal, Brandon McCarthy, um homem que detesta a sua condição de palhaço de circo e que sonha com um futuro grandioso. Neste livro, descobre uma forma de alcançar esse futuro, mas a sua desconsideração pelos meios não passará despercebida.
Desde logo, ao ler o subtítulo O Moderno Frankenstein, o leitor adivinha um desfecho trágico para o protagonista. Apreciei este jogo com a tradição literária, bem como o tema principal da narrativa: a sombra que vive dentro de cada um de nós. Mesmo que o leitor não conheça a teoria de Carl Jung, não é difícil deduzir o que é essa sombra: as partes feias e, passo a expressão, «monstruosas» que residem no ser humano e que este, por vezes, tem dificuldade em aceitar.
Estudo monstros literários na minha profissão e, por isso, este livro suscitou o meu interesse, principalmente por o autor ser português e pelo cenário circense que começou por construir. Quem não está familiarizado com nenhum dos conceitos que o autor aborda, tem aqui um ponto de partida muito interessante para, depois, caso queira, ir investigar mais a fundo.
Também valorizo a discussão sobre o que significa ser-se um «monstro». Tal como se narra no texto, monstros não são apenas seres imaginários e ferozes; podem também caminhar entre nós. Aliás, isto leva-me àquela que comumente é apontada como sendo a raiz da palavra «monstro»: monstrare, que se pode traduzir do latim por «mostrar» ou «revelar». O monstro é um espelho do próprio ser humano, e, como tal, ajuda-o a definir os limites da sua humanidade (para saber mais sobre o assunto, aconselho folhear: Monstros, de José Gil; On Monsters, de Stephen T. Asma; Monster Theory, de Jeffrey Jerome Cohen).
Apesar da premissa interessante, a execução da mesma levantou alguns problemas. Em primeiro lugar, assinalo a abundância de notas de rodapé explicativas. Para mim, o que fica por dizer é tão importante quanto o que é dito. A sugestão estimula a imaginação do leitor. É pena que tudo o que se poderia ler nas entrelinhas tenha sido revelado de forma tão explícita..
Em segundo lugar, as considerações que se vão tecendo sobre a Humanidade e a sociedade portuguesa são banais e superficiais, ancoradas na ideia de «canibalismo» humano intrínseco à espécie. Segundo o protagonista deste livro, o ser humano é interesseiro, sádico e egoísta. O meu problema principal é a falta de nuance e novidade nesta visão. São ideias que se ouvem múltiplas vezes de vários tipos de personagens e filosofias, e são aqui repetidas de uma forma que ronda o clichê. Não há grande «alma» por trás das palavras ácidas do protagonista, apenas ideias repetidas como uma lengalenga, parecendo refletir sobre elas, mas sem as discutir profundamente ou ir além de um entendimento com base no ódio. É certo que é propositado, uma mantra para o protagonista continuar a percorrer este caminho, mas acaba por se tornar cansativo quando as mesmas ideias são reiteradas em quase todos os capítulos, sem grande evolução. Só no final é que esta visão parece ser desafiada pela psicoterapeuta do protagonista, a Dra. Rita Elena, que, paradoxalmente, também parece retirar um prazer sádico de expor as fraquezas e falhas de McCarthy.
Isto leva-me ao meu terceiro problema: as personagens femininas. São sedutoras, ecos do protótipo da bruxa (médium, no caso) e da mulher-demónio que causa a perdição dos homens. Não senti que fossem, realmente, pessoas, mas conceitos ao serviço da história de McCarthy.
Quarto problema: o protagonista é construído como uma ode ao Dr. Frankenstein, mas parece ser mais uma caricatura feita apenas de defeitos. Victor Frankenstein, apesar de ambicioso, egoísta e cobarde, tem qualidades que levam o leitor a importar-se com ele e com a sua história: é curioso e idealista; mostra compaixão para com os seus semelhantes; procura acautelar os outros para que não cometam os mesmos erros que levaram à sua desgraça. É uma personagem trágica que nunca percebe verdadeiramente o seu maior erro, o de abandonar a sua criatura, que, e aqui concordo com o narrador de Homem ou Besta, se revela mais humano do que o próprio criador. McCarthy, por sua vez, despreza tudo e todos; é presunçoso e narcísico; um charlatão sem ideias próprias, copiando as conceções e os caminhos de outros. Não encontrei nenhuma qualidade que me fizesse compadecer dele.
Assim, o paralelo com Frankenstein, apesar de presente, acaba por se restringir às ambições de McCarthy, que, tal como Victor Frankenstein anseia quebrar a barreira entre a vida e a morte, procura penetrar os segredos da mente dos humanos. Mas a obra de Mary Shelley é, acima de tudo, uma história sobre o sofrimento que a solidão e o abandono provocam. A história de McCarthy é a de um palhaço que busca uma forma de se sobrepor a toda a sociedade que despreza e julga ser-lhe inferior. Encontra no mentalismo a forma de expor as «sombras» que todos escondem, de superar a sua condição de palhaço que entretém um público hipócrita, que precisa de se rir de um «monstro» para expurgar as suas partes «monstruosas». Apesar de também ser um protagonista solitário, a sua história é maioritariamente de ódio, o que acaba por ser limitativo no que toca à dimensão psicológica que podia ter. Mesmo assim, o autor cumpriu bem o objetivo de mostrar como McCarthy, apesar de todos os esforços para se tornar um «Jóquer», continua o mesmo palhaço que detestava ser. O momento em que se apercebe da sua verdadeira pequenez é bastante satisfatório.
Resumindo, Homem ou Besta pode agradar a todos os que são fãs de Frankenstein e narrativas do género. Quem não aprecia ler sobre a queda de um Ícaro? A interligação dos conceitos da sombra de Jung, do monstro e do palhaço é fascinante, apesar das imperfeições. Qualquer fã de monstros humanos e de grandes quedas de um protagonista insuportável vai divertir-se com este livro.
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Patrícia Sá
Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia «Sangue Novo». Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com «post-its».