Crítica ao livro Caruncho, de Layla Martínez

Uma história onde o sobrenatural faz parte da realidade das personagens e intensifica o trauma, o ódio e o rancor de mulheres cujas vidas foram moldadas por um passado de opressão.

«Todas as famílias têm os seus mortos debaixo das camas, a diferença é que nós vemos os nossos, já dizia a minha mãe.»

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Madalena Feliciano Santos

Caruncho é o primeiro livro da escritora espanhola Layla Martínez, traduzido para português por Guilherme Pires. A história é contada através de duas perspetivas: a de uma neta e a da sua avó. Centra-se num acontecimento recente, o desaparecimento de um menino e, ao mesmo tempo, dá-nos a conhecer o passado destas personagens, a história da sua família e, acima de tudo, o contexto do presente em que vivem. Vemos o que é viver naquela pequena terra, naquela casa que foi construída, como elas sempre dizem, para as encurralar.

Poderíamos dizer que um dos pontos centrais de toda a narrativa é a casa onde estas mulheres vivem. Apesar de as encurralar, é também fonte de poder para se vingarem, para mostrarem o ódio e o rancor que foi passado de geração em geração de mulheres, parecendo entranhar-se em cada divisão e em cada móvel e nas mulheres que nela vivem e que dela são prisioneiras. Conseguimos fazer ligações a histórias anteriores sobre casas assombradas, como A Maldição de Hill House, mas os elementos sobrenaturais, o facto de a casa parecer estar viva ou ter sentimentos, as sombras que são companheiras de casa destas mulheres, os pés debaixo das camas que são armadilhas, os seres dentro de tachos e panelas e os barulhos dentro do armário são apenas o dia a dia destas personagens, dizendo-nos muito sobre a dimensão do terror interno e externo que vive nelas e com elas.

A narrativa faz uma ligação interessante à expressão skeletons in the closet, tanto pelos segredos que a casa guarda, e que vamos descobrindo ao longo da história ( sempre com aquela sensação de que há mais para desvendar) como por haver literalmente esqueletos dentro de um armário, ou de uma parede, o que, por si só, nos diz muito sobre a ideia de a própria casa ter sido construída sobre podridão, ódio e um quê de vingança, assim como o facto de ela própria ser, desde o início, como uma prisão. Todos os elementos sobrenaturais trazem um terror mais palpável, o terror de ser esta a realidade das personagens e, pior ainda, de elas já estarem habituadas.


«É que nesta casa os mortos vivem demasiado tempo e os vivos muito pouco. Os que estão entre eles, como nós, não fazem nem uma coisa nem outra. A casa não nos deixa morrer, mas também não nos permite viver fora dela.»


Acima de tudo, vemos as dificuldades de se viver num ambiente assim, como o trauma pode muito facilmente passar de geração em geração, entranhar-se em heranças que relembram o passado e moldar a vida de tantas pessoas, de tantas mulheres, e virá-las umas contra as outras. Descobrirmos, no final, que o livro é baseado na vida e na casa da avó materna da autora ainda nos faz pensar mais sobre o impacto da história e na sua proximidade com a vida real.

Este é um livro para todos os que procuram uma história sobre mulheres, sobre dor e sobre todas aquelas emoções que, muitas vezes, se diz que têm de ser abafadas. O ódio, a vingança, o rancor: todas elas são colocadas frente à nossa cara. Ah, e se vos dissesse que os anjos, afinal, são insetos gigantes em forma de louva-a-deus?