Crítica a «O Deus das Moscas Tem Fome», de Luís Corte Real

As origens deste detetive são tão misteriosas como os casos que tem de resolver.

A leitura deste livro obrigou-me a dar a mão à palmatória e admitir que é bom, mas, mesmo assim, não fica incólume de alguma crítica.

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Laura Silva

Benjamim Tormenta é um detetive do oculto. Não sabemos muito do seu passado (ele também não), pelo que toda a sua viagem até ao presente está envolta num grande mistério. Tudo isso é agravado pelo facto de Benjamin ter o demónio Lamashtu dentro de si — literalmente. Homem e besta estão em constante luta: o primeiro porque quer ter algum controlo sobre a humanidade que lhe resta; a última porque quer usar a carcaça onde está para espalhar o caos completo.


Com esta premissa, seguimos Benjamim Tormenta em diversos casos, ao longo de vários contos. À exceção do primeiro (que não se passa em Portugal), os restantes passeiam-nos pelas ruas de Lisboa (e Sintra), levando-nos a conhecer um pouco do que era, em particular, a capital portuguesa em 1873.


Não há dúvidas de que o autor fez uma pesquisa exaustiva e tem bastante conhecimento sobre a época — a sua descrição transporta-nos para o seio desta história, para as casas senhoriais exuberantes, para ruas cheias de um povo humilde que faz o melhor com o que tem e, acima de tudo, para um ambiente extremamente distinto daquele que hoje se vive em Lisboa. Por vezes, especialmente quando Luís Corte Real descrevia as condições decrépitas e insalubres de certos locais, quase conseguia sentir o cheiro das ruas.

Contudo, este aspeto é, curiosamente, uma faca de dois gumes: se, por um lado, as descrições são detalhadas ao ponto de me permitirem sentir, cheirar e ouvir tudo aquilo por que Benjamim Tormenta passa, por outro são, em muitos momentos, extremamente densas. E, quando o autor recorre a comparações e metáforas, a situação consegue facilmente levar ao exaspero, em particular nos casos em que Lamashtu, o demónio, discorre ladainhas quase ritualísticas sobre todos os locais onde esteve e a devastação que criou.

Se metade da descrição fosse removida em período de edição, mantinha-se praticamente o mesmo conteúdo e haveria muito mais espaço para desenvolver o background de Benjamim Tormenta.


As histórias dos contos de autoria de Luís Corte Real não me desiludiram — havia mistério, drama, humor e terror em partes iguais, sempre cativantes o suficiente para me querer fazer saber mais, mas, no meio de tanta descrição, é fácil perdermo-nos.


Devo confessar que, em certos momentos, achei o diálogo de Lamashtu desnecessariamente provocador. Sabemos que é um demónio e que odeia a humanidade, não preciso que ele me recorde, em todos os contos, da podridão das pessoas, do cheiro das suas partes íntimas e do claro prazer que tira da violência, em particular a sexual. Considerando que Tormenta não faz ideia do que esta besta seja, preferia que houvesse aqui um espaço reservado à origem deste mal. Até porque também este elemento é um pau de dois bicos: sendo a obra um conjunto de contos, naturalmente que a exploração da personagem principal será limitada, porque a ênfase recai sobre cada um dos casos que Benjamim vai resolvendo. Não existe necessariamente uma ligação entre os contos, logo, também não se escarafuncha a identidade de Tormenta ou de Lamashtu de uma forma satisfatória.
De realçar que, pelo meio, existe um conto escrito por Anabela Natário que me recusei a ler ao fim de duas páginas, simplesmente porque não me identifiquei com a escrita. Não percebo, sequer, o sentido deste conto — Luís Corte Real dedica-se a criar uma voz para o seu personagem e uma narrativa que o caracterize, entrecortando isto com um conto de uma autora totalmente distinta, que, como é natural, apresenta uma narrativa e tom diferentes. Teria sido mais interessante se o conto tivesse como personagem principal outra figura da história, como, por exemplo, Ramanujan, o criado fiel de Benjamim (cuja história também desconhecemos), caso em que a mudança de tom faria todo o sentido, podendo a narrativa ser explorada de forma diferente.

Ao lerem tudo isto, certamente poderiam chegar à conclusão de que odiei O Deus das Moscas Tem Fome, mas deixem-me esclarecer que tal não é verdade. Gostei do livro, ainda que entenda que os pontos anteriores merecem ser elencados. Achei que os monstros, o terror, o mistério e os casos em si são muito cativantes (e hesitantemente reconheço que dariam uma boa série de TV).

No entanto, a minha maior dificuldade com este livro foi a componente pessoal e que, honestamente, me bloqueou bastante na escrita desta crítica.

Luís Corte Real é, sem qualquer dúvida, uma figura controversa que não se coíbe de comentar aquilo que acha da literatura e dos autores portugueses. Cresci a ouvi-lo dizer que os autores portugueses copiam Tolkien, que não são originais, que têm um mau domínio da língua portuguesa, que escrevem sempre histórias passadas no estrangeiro e mais um conjunto de coisas.

Não nego que o livro está bem escrito e com uma história envolvente; também não nego que o ponto alto desta obra é passar-se maioritariamente em Portugal, em particular Lisboa, pois a familiaridade é confortável (ainda que os demónios não o sejam). Mas dei por mim a pensar que o Benjamim Tormenta é basicamente uma «versão tuga» do The Witcher, que em português é apelidado de bruxo. A descrição usada em O Deus das Moscas Tem Fome e no segundo volume desta série, segundo uma entrevista do autor dada à Fábrica do Terror, foi inspirada por Eça de Queiroz — há, inclusive, um conto com Eça como personagem secundária, em que o «seu amigo» Carlos Fradique Mendes o leva até Tormenta, embora leitores atentos saberão que Fradique Mendes era um poeta fictício criado por um coletivo de autores, entre eles o próprio Eça. De acrescentar que a edição da obra é feita pelo próprio autor, e o livro foi publicado na sua própria editora, o que permite ultrapassar as dificuldades típicas que outros autores sentem durante este processo.

Tudo isto para dizer que, em suma, independentemente da qualidade do livro e das críticas que lhe possam ser feitas, é um pouco difícil separar a obra do seu autor e do eventual ressentimento que os seus comentários possam criar.

Se é errado que outros autores portugueses «copiem» Tolkien ou Saramago, então também será que Luís Corte Real faça o mesmo com o seu bruxeiro; se inspirar-se noutros autores conhecidos é demonstrar falta de originalidade, então também será que o autor se inspire na narrativa de Eça de Queiroz e Lovecraft.

Ao fim e ao cabo, nada é novo. Já tudo foi escrito antes. Tolkien não criou elfos e mundos mágicos — baseou-se na mitologia que conhecia e atribuiu-lhe o seu cunho pessoal; Eça inspirou-se na sua vida e na cidade para contar as suas histórias; Saramago criticou a sociedade em que viveu e que observou, apondo a sua identidade através de uma escrita peculiar; George R. R. Martin foi à história europeia para escrever os seus cenários de batalha.


Por muito que deseje separar as duas coisas, é-me impossível evitar um olhar exageradamente crítico quando Luís Corte Real parece desprezar os autores portugueses — que, na sua larga maioria, são arremessados ao público sem qualquer apoio literário, fazendo exatamente aquilo que Luís Corte Real faz: inspirarem-se em todos os media de que gostam.


Da mesma forma que este autor é uma figura controversa, também esta crítica o será — muitos dirão que a crítica a uma obra literária se deve focar no objeto livro e não no seu autor. No geral, concordo e gabo-me de ser capaz de fazer essa separação quando leio — mas também sou humana e sei reconhecer-me enquanto ser imperfeito; também sei admitir quando essa separação me parece impossível e influencia a minha visão sobre a obra.

Como disse a muita gente que me perguntou o que achei deste livro, O Deus das Moscas Tem Fome não é um mau livro, mas é difícil abraçá-lo na totalidade face à postura que o seu criador tomou publicamente tantas vezes. E, atrevo-me a dizer, esse é mesmo o maior entrave em relação a este livro, que, no fundo, tem tudo para dar certo, mas é constantemente perseguido pela nuvem dos comentários do seu autor.